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agosto / setembro de 2001
Foi promulgada, no último dia 10
de julho, a Lei n. 10.257/2001, que
estabelece as diretrizes gerais da políti-
ca urbana, denominada “Estatuto da
Cidade”.
Embora o Estatuto da Cidade
chegue com significativo atraso, visto
a preocupante realidade das cidades
brasileiras, ele surge sob o signo da
esperança de efetiva reformulação do
nosso cenário urbano. Se bem utiliza-
do, dotará o poder público de base
legal para sustentação às ações trans-
formadoras dos governos locais.
A verdade é que as cidades
brasileiras sofrem de uma disfunção
histórica.
Com exceção de algumas capitais
que foram literalmente planejadas (Na-
tal, no Séc. XVIII, Goiânia, Belo Ho-
rizonte e Brasília, no Séc. XX) e algu-
mas intervenções pontuais como as do
Marquês de Pombal (Séc. XVIII) e
Carlos Lacerda (Séc. XX) no Rio de
Janeiro, ou Prestes Maia em São Pau-
lo, o fato é que as cidades brasileiras
são um somatório de loteamentos pri-
vados (alterados pelo tráfego, por
shopping centers ou pelo avanço do
comércio sem regulamentação) e de
assentamentos humanos clandestinos,
formados pelas camadas mais pobres
da população.
A privatização do uso do solo ur-
bano, dessa forma, levou à “feudaliza-
ção” das cidades, com as partes no-
bres sendo loteadas em favor dos mais
ricos, reservando-se encostas, fundos
de vale e entorno de zonas fabris e de
despejo para os mais pobres.
Soma-se à falta de organização ur-
bana uma política fiscal burra, que
condiciona o crescimento da arre-
cadação das prefeituras à crescente ur-
banização dos municípios. O resulta-
do é a destruição das áreas rurais, com
perdas para a produção e distribuição
de hortifrutigranjeiros, a destruição de
mananciais de água e da cobertura
vegetal natural, com conseqüências
danosas para as populações.
As externalidades desse modo de
produzir cidades não param por aí. Um
Estatuto da cidade
dos fenômenos mais presentes na vida
das populações das grandes cidades e
regiões conurbadas é a adição incondi-
cionada de pólos geradores de tráfego
(
centros comerciais, grandes con-
domínios, universidades, centros de
abastecimento, pólos de diversão,
etc.), congestionando vias e alterando
a qualidade de vida dos bairros.
Não é difícil, portanto, avaliar quão
enormes são as perdas econômicas
produzidas por esses aglomerados ur-
banos que se multiplicam como se fos-
sem verdadeiras culturas de vírus so-
bre nosso território.
Mas com o Estatuto da Cidade isso
tudo vai melhorar?
Não existem respostas simples
para essa questão. O fato é que faltam,
para a maioria das cidades brasileiras,
instrumentos legais que façam a pro-
priedade urbana cumprir sua função
social, promovendo-se o desenvolvi-
mento sem esquecer a qualidade de
vida da população. É verdade, tam-
bém, que nas cidades encontram-se
reunidas as melhores condições cul-
turais e materiais, capazes de elevar os
padrões da dignidade humana.
As ferramentas desse novo instru-
mento de gestão pública urbana não
são de todo desconhecidas. O mérito,
talvez, do novo Estatuto, é de reunir
em um grande guarda-chuva legal to-
das as ferramentas necessárias, autori-
zando os entes municipais a promo-
ver a reforma urbana, afastando ques-
tionamentos pontuais quanto à consti-
tucionalidade ou legalidades de alguns
mecanismos instituídos por legislações
locais.
São bem vindos, por outro lado, os
mecanismos coativos dispostos no
Estatuto, que obrigam a propriedade
urbana a cumprir sua função social.
O imposto progressivo, a desapropria-
ção, o usucapião, ora revitalizados,
bem como outros instrumentos que
promovam a reforma fundiária das ci-
dades, possibilitarão a correta urba-
nização dos assentamentos populares
e combaterão a especulação imobi-
liária ( sem dúvida, a maior respon-
sável por abrigar o fenômeno da fave-
lização).
Chamo atenção especial para o
resgate e desmistificação, no Estatu-
to, de instrumentos importantes para
o gerenciamento das cidades, os quais
vinham sofrendo preconceitos e
ataques de origem conservadora, mui-
tas vezes por puro desconhecimento
político-institucional do mecanismo.
Exemplo disso são as “Operações In-
terligadas”, que se aplicadas em con-
junto com intervenções de alto im-
pacto, como as “Operações Urbanas”,
podem produzir regenerações sen-
síveis em áreas degradadas, adicio-
nando o benefício das contrapartidas,
que garantem suporte para programas
de habitação popular.
Finalmente, destaco o Estudo de
Impacto de Vizinhança, importante
instrumento de Avaliação de Impacto
Ambiental, introduzido definitiva-
mente na gestão ambiental urbana.
Com essa ferramenta, empreendimen-
tos geradores de tráfego intenso e/ou
potencialmente poluidores (como fon-
tes de poluição do ar e sonora), não
serão licenciados sem antes serem ri-
gorosamente avaliados por meio de
procedimento próprio, fazendo uso do
sistema municipal de meio ambiente,
podendo exigir-se sua mitigação ou
compensação commedidas que visem
o bem estar da população afetada.
Enfim, embora tenha tardado, o
Estatuto da Cidade vem em boa hora
preencher uma lacuna legal.
Se bem utilizado, vale dizer, se
houver vontade política dos gestores
municipais e participação efetiva da
cidadania, será uma importante base
para a produção de cidades mais sau-
dáveis.
São bem vindos os
mecanismos coativos
que obrigam a
propriedade urbana a
cumprir a sua função
social.