12
março a maio de 2002
A
cobrança pelo uso econômi-
co da água é o corolário do
processo de implantação da
Lei da Política Nacional de
Recursos Hídricos e, embo-
ra o assunto não seja novo,
sua discussão está na ordem
a r t i g o
Planos de Bacias
versus CPMF Hídrica
Antonio Fernando Pinheiro Pedro
é advogado especialista em Direito Ambiental, diretor da ABAA - Associação Brasileira dos Advogados
Ambientalistas, Professor de Direito Ambiental e membro do Partido Verde de São Paullo.
do dia. Basta verificar o cenário de con-
flitos que emerge de fatores como a crise
da demanda de energia, o processo de
privatização do sistema de saneamento
brasileiro e as sempre crescentes res-
trições impostas pela legislação ambien-
tal brasileira, para constatar que o assun-
to deve estar na agenda de discussões de
todos os setores da vida nacional.
Desde a edição do Código de Águas,
na década de trinta do século passado,
quando foi firmado o conceito de “bem
público” para a água, reconheceu-se que
ela não poderia mais ser uma coisa sem
valor (“
Res Nulius
”).
Diplomas legais
bem posteriores vieram preencher lacu-
nas importantes, dando condições para
que o processo de pagamento fosse efe-
tivado. A Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente (1981), por exemplo,
consagrou o conceito do “Usuário Paga-
dor”, ou seja, a retribuição devida pelo
uso do recurso ambiental para fins
econômicos. Outro reforço importante
para a tese da cobrança foi introduzido já
no final do século XX. O Princípio 16,
da Conferência do Rio, a ECO 92, in-
troduziu o princípio do “Poluidor Paga-
dor”, impondo a internalização dos cus-
tos ambientais pela atividade poluidora,
bem como a retribuição econômica quan-
do o recurso ambiental integra o pro-
cesso produtivo como insumo. Trata-se
de fator ideológico relevante para o bom
entendimento da moderna política
econômica ambiental, em cuja direção
orienta-se a Política Nacional de Recur-
sos Hídricos brasileira.
Posto o arcabouço jurídico, ideológi-
co e econômico, é preciso observar al-
guns fatos históricos, responsáveis pela
não implementação, ainda, da prática da
cobrança pelo uso da água para fins pro-
dutivos.
Exemplo é o caso da Legislação
Paulista de 1991 - Lei Estadual nº 7.663/
91-,
que introduziu o conceito de auto-
nomia na gestão de bacias hidrográficas
(
inspirada no modelo francês) e que, cri-
ou obstáculos para a adoção de um siste-
ma de gestãomais coorde-
nado e, a nosso ver, mais
adequado.
Com efeito, como já
abordamos na primeira
edição do
Ambiente Le-
gal
,
essa visão descentra-
lizada não se coaduna
com a realidade política e
econômica do Brasil. A
conformação geofísica e
ambiental de nossas ba-
cias hidrográficas, por
outro lado, não favorece a
completa autonomia de gestão. No caso
brasileiro, há uma interrelação e interde-
pendência das bacias, quer pela trans-
posição de águas e esgotos de uma bacia
para outra, quer pela interligação es-
tratégica das bacias, que sempre apon-
tam na direção da vertente oceânica, ou
na da Bacia Hidrográfica do Prata, o que
praticamente federaliza o sistema.
Embora a descentralização da gestão
por bacias quebre o monopólio do Exe-
cutivo face aos interesses locais (municí-
pios, indústrias e agricultura), de outro
lado, cria uma série de obstáculos para
sua implantação, dada a complexidade
política na formulação dos chamados
planos de bacias”, sem os quais não há
como justificar a cobrança pelo uso da
água. A criação prevista na Lei paulista,
de Agências dedicadas a cada bacia so-
fre várias interferências, devido ao con-
flito do uso múltiplo da água com inte-
resses estratégicos, tais como a geração
de energia, esgotamento sanitário, im-
plantação de distritos industriais ou agrí-
colas, todos competindo pelo volume de
consumo de água.
Enfim, em meio a essa crise toda,
parece que o Estado de São Paulo, embo-
ra pioneiro no estabelecimento de uma
Política de Recursos Hídricos, perdeu o
Bonde da História”, vez que não con-
segue aprovar a regulamentação de seu
modelo de cobrança pelo uso da água no
Legislativo Paulista.
No Plano Federal, porém, as águas
são mais cristalinas. Partindo da mesma
matriz, vez que a lei paulista inspirou a
Lei de Política Nacional dos Recursos
Hídricos - Lei nº 9.433/97 -, houve, por
bem o Governo Federal que mudar a es-
tratégia da PMRH, criando, no ano de
2000,
a Agência Nacional de Águas -
ANA -, reformulando a Lei de 97. An-
dou bem a União ao criar um ambiente
regulatório integrado, propiciando diá-
logo dinâmico entre a ANA, a ANEEL
(
energia elétrica), a ANP (petróleo) e o
IBAMA (meio ambiente).
Portanto, com a cria-
ção daANA, a Política de
Preços Públicos passou a
ser conduzida de manei-
ra a buscar um modelo
padrão, a partir de uma
equação abrangente. As-
sim é que, na formulação
do preço final da água,
deverá ser levado emcon-
ta fatores relacionadas à
DBO (Demanda Bio-
química de Oxigênio); ao
volume de água consumi-
da; ao volume de água devolvida; à con-
centração de poluentes e ao volume de
água utilizado para dissolução da carga
poluidora. Acrescente-se nesta equação
algumas constantes, que devem ser fixa-
das a partir da elaboração do Plano de
Gestão de cada BaciaHidrográfica, visan-
do a aplicação de recursos em projetos
de melhoria de qualidade e, enfim, tere-
mos o valor pelo metro cúbico da água
consumida, valor esse diferenciado para
cada tipo de consumidor (indústria, agri-
cultura, serviços e residencial).
O que tem atrapalhado o processo de
fixação do preço da água é a pressa com
que o Governo Federal deseja introduzir
a cobrança pelaANA, sem aprovação dos
respectivos Planos de Gestão de Bacias.
Isso ficou bastante transparente no dia 14
de março, quando o Conselho Nacional
de Recursos Hídricos aprovou os valores
pelo uso das águas da Bacia do Rio Pa-
raíba do Sul, sem aprovação do ne-
cessário Plano de Gestão da Bacia.
A lição que ficou do episódio é que,
apesar da louvável performance daANA
desde sua criação, cuja atuação tem se
baseado fundamentalmente em pa-
râmetros técnicos, a Agência não pode
ver-se contaminada pela fome arreca-
datória do Governo Federal, sob pena de
estarmos criando mais um tributo, e não
ummecanismo extra-fiscal, uma “CPMF
hídrica”.
No caso de São Paulo, o “Bonde da
História” está passando, pilotado pela
União Federal, e às pressas...
Outra oportunidade, talvez não
apareça tão cedo.
Foto: Luiz Cláudio Barbosa
Antonio Fernando Pinheiro Pedro