ambiente legal
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lá penetravam. Ali habitavam os animais selvagens,
pessoas perigosas ou aqueles que por alguma razão
haviam se isolado da sociedade.
Na maioria das culturas esta região selvagem e
desabitada era a moradia dos personagens míticos,
associados à religião e às lendas populares. Como
não lembrar da “Odisséia”, poema atribuído a
Homero, no qual são descritas as viagens de Ulisses
pelo mundo “não-humanizado”, habitado por cria-
turas como os gigantes Ciclopes, os antropófagos
Lastrigões e as Sereias, que atraiam para a morte
aqueles que os ouvissem. A epopéia babilônica de
Gilgamesh faz referência à cidade, oposta à remota
região habitada pelo mítico ser Enkidu. Na visão de
mundodoAntigoEgitotambémhaviaumafronteira
imaginária entre o vale do Nilo, onde se localizava
a civilização (com todos os seus benefícios mate-
riais e espirituais para os vivos) e a região externa,
principalmente o Ocidente, para onde se estendia o
deserto sem fim, habitado por demônios e espíritos
malignos.
Essa maneira de enxergar o meio ambiente, a
dicotomia “humanizado e não-humanizado” per-
dura através de toda a história da humanidade, as-
sumindo diversas formas, até que a partir do século
XVI as Grandes Descobertas, os avanços da Ciência
e a crítica filosófica, passam gradualmente a desmis-
tificar a natureza “não-humana”, desembaraçando-a
de todo aspecto sobrenatural, que as regiões remo-
tas e desabitadas ainda tinham no imaginário popu-
lar. Ao final do processo de mudança de paradigma,
aproximadamente no início do século XIX, a na-
tureza selvagem e inexplorada deixava de inspirar
medo ao sobrenatural, para despertar a cobiça pelos
recursos naturais, prontos a serem explorados.
Não é coincidência que o período de “desmisti-
ficação” da natureza coincida com o surgimento do
capitalismo e do desenvolvimento tecnológico. O
clima é de entusiasmo com o desenvolvimento da
indústria, dos transportes e do grande número de
descobertas científicas. Em pouco tempo, vaticina-
vam alguns à época, o progresso deveria beneficiar
todas as regiões da Terra, mesmo as mais longín-
quas. Avançava-se sobre áreas remotas da África
para encontrar minas de ouro e diamantes. Der-
rubava-se a floresta na América do Sul para cons-
truir ferrovias, que deveriam melhorar os trans-
portes e trazer riqueza para a região. Vastas áreas
de floresta eram dizimadas no Sudeste Asiático para
estabelecer plantações de chá, produto consumido
na Inglaterra.
Ao longo de todo o século XX, a história não foi
diferente. Grandes êxodos humanos provocaram
um aumento exponencial da população em cidades,
sobrecarregando a infra-estrutura de transporte, sa-
neamento e moradia. Milhares de fábricas surgiram
em bairros afastados, poluindo mananciais de água
e expulsando pequenos agricultores. Vastas áreas de
floresta são derrubadas para a criação de gado, en-
quanto que grandes barragens, construídas para ge-
ração de eletricidade, destinada aos grandes centros
urbanos, provocam inundações de vastas regiões
cobertas por florestas tropicais.
O resto da história nós já conhecemos; até
porque ainda hoje convivemos com os fatos. Aos
poucos, porém, o homem terá de mudar sua ma-
neira de atuar sobre a natureza, o “mundo-não
humano”. A princípio totalmente inserido na na-
tureza, o homem do Paleolítico Superior não se via
como algo fora ou à parte de seu meio ambiente.
Com o surgimento das primeiras civilizações, o
homem passou a encarar o ambiente selvagem (a
floresta, o deserto, as montanhas) com temor, como
local inseguro por ser o lugar habitado por feras e
seres sobrenaturais.
Além disso, sempre pairava no ar a ameaça
de que a natureza “humanizada”, o local onde es-
tavam as cidades e os campos, pudesse, por causa
de acidentes naturais (seca, inundação etc.) ou
guerra, voltar ao estado selvagem original, ocasio-
nando o desaparecimento dos homens e dos deu-
ses (quantas cidades como Tróia e Persépolis não
foram queimadas e destruídas, voltando a ser “co-
bertas pela erva e tornando-se covil de feras”, como
relata a Bíblia?). Na era moderna, o homem passou
a encarar o meio ambiente natural como região a
ser explorada e dominada, por ser fonte inesgotável
de recursos, prontos a serem transformados em
matéria-prima e produtos, destinados ao consumo
humano.
Hoje, nossa civilização percebeu que há neces-
sidade de mudar novamente nossa visão da na-
tureza. Desta vez, porém, de uma maneira cons-
ciente, conhecedores que somos agora de todas as
transformações da História. Após vivermos com-
pletamente inseridos na natureza por centenas de
milhares de anos e depois de a temermos por ou-
tros milhares de anos, para em seguida a explorar-
mos mais algumas centenas de anos, resta-nos
pouco tempo para entendermos a natureza e co-
nhecermos as suas limitações, que também são as
nossas.