A arrogância é expressão do egocentrismo corporativo
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Triste Brasil, cuja governança nos reduz a meros pagantes de um espetáculo mambembe. Pantomima protagonizada por deslumbrados de ternos de grife, toga de alfaiate e uniforme sob medida… cujo “estilo” não impede a fedentina.
A tragédia do Brasil é o sistema de governança piramidal, movido pela soberba.
No topo se encontram os rentistas, com olhos postos no lucro financeiro. Para manter os lucros, se necessário for, moem e esmirilham o País.
A serviço dos rentistas, um punhado de espertalhões, convivem com uma aristocracia desprezível e descompromissada. Logo abaixo, segue a camada de lacaios postados na nata da burocracia de Estado e no complexo da mídia mainstream.
A isso, chamamos establishment.
Na base da pirâmide, vive a gente que luta todo dia por mais um dia e, no meio, o inferno dos iludidos, dos sobreviventes, dos conscientes desesperados, dos que buscam manter dignidade… e daqueles que não tem nenhuma. Todos facetas da mesma tragédia corporativa e governamental.
Há, porém, na estrutura real da Nação, uma argamassa de dignidade que une a enorme e digna maioria de brasileiros, formada nos valores cristãos, dedicada ao trabalho e à formação dos filhos e atenta aos valores nacionais. Esse povo – camada da população interessada no avanço social e econômico do País, fez, faz e fará toda a diferença. Essa argamassa pode fazer ruir a pirâmide e, não por outro motivo, é temida pelo seu vértice.
Mas não vamos aqui, tratar do Brasil real e, sim, da cultura da governança baseada na soberba, que vige nas estruturas de poder, para tormento de todos.
Fenômeno comportamental
A “Pirâmide da Arrogância” revela-se como fenômeno comportamental, em suas vertentes antropógica, sócio-política, econômica e cultural.
Desde o início de nossa história política e administrativa, a soberba se fez presente no massacre etnico-social, no analfabetismo secularmente imposto, na política fundiária – monocrática e cartorial, na vergonha cultural de ter origem numa terra colonizada e no arraigado modo predatório de viver a vida… ou sobreviver a tudo isso.
Em nome do lucro imediato, desconsidera-se riscos humanos, danos ambientais, moralidades e dignidades. Importa a redução de custos, os interesses financeiros antinacionais e o desprezo histórico ao País e sua gente.
Esse cipoal de indignidades contamina cada pedra da estrutura piramidal inserta na cultura de governanças, pública e privada, que nos esmaga a todos… e afunda a Nação.
Cultura da soberba
Raskólnikov é o personagem principal do grande romance “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski.
Pobre e atormentado com sonhos de grandeza, Raskólnikov divide o mundo em pessoas que ele entende importarem à humanidade, e a gente ordinária, que ele julga sem qualquer importância.
Amparado por essa justificativa moral, o arrogante personagem assassina uma velha agiota, visando apropriar-se de seus pertences, e termina matando também a irmã da vítima, que aparece na cena do crime inadvertidamente.
Consumido pela culpa, termina confessando o delito e encontrando a redenção na pena a ele aplicada.
No mar da soberba brasileiro, lotado de gente arrogante e desprezível, não apareceu um único Raskólnikov arrependido. Talvez um iluminado ou outro, para recitar os versos de Fernando Pessoa (“nunca conheci quem tivesse levado porrada”…).
O mundo piramidal é pior que o imaginado na ficção ou no poema.
Há um profundo sentimento de segregação entre “pessoas que importam” e “a gente ordinária”.
O “vulgo” não importa nas decisões judiciais da suprema côrte “à la carte”, nas análises de risco gerencial do banco da esquina, nos investimentos corporativos ou nas decisões pela contenção de gastos que afetam a segurança de atividades poluentes.
A Pirâmide da Arrogância supera a Síndrome de Raskólnikov, pois não deixa rastro de arrependimento.
A soberba que constitui o eixo deste comportamento gerencial está no cerne dos desastres da Barragem do Fundão e da Boate Kiss. Está nos massacres penitenciários, no Mensalão, no Petrolão, nos escândalos financeiros das Lojas Americanas, na degradação ambiental, na violência urbana, nas campanhas de demissão em massa e em todas as tragédias experimentadas nesse período de “transe nacional”.
Revela-se no desprezo “piramidal” pelos semelhantes; sejam eles funcionários alocados em edificações postadas na linha de inundação da barragem em Brumadinho, sejam crianças alojadas em contêineres precários – que incendiaram no clube de Regatas do Flamengo, no Rio. Vítimas afogadas e incineradas pelo desprezo de direções que não hesitaram em gastar milhões numa campanha publicitária ou na contratação de “craques”.
Importante atentar para o fenômeno comportamental e suas sinergias. A soberba contamina o ambiente corporativo, empresarial e público, estimula vaidades, desumaniza procedimentos, desfoca o respeito aos seres humanos e substitui valores morais por interesses corporativistas, ideológicos ou de mero lucro.
A pirâmide da arrogância é expressão do egocentrismo corporativo. Substitui o valor moral pelo utilitarismo amoral. Retira conteúdo à ética, tornando-a elemento decorativo para belos discursos, acórdãos quilométricos e campanhas de marketing – isca para os incautos.
Nessa espiral em direção à entropia, o vértice da pirâmide só vislumbra o que quer – não o que há.
Relações corporativas e contratos com terceiros, refletirão apenas o que o vértice dita, não o que a realidade apresenta. Desta forma, o talento é substituído pela bajulação.
Na pirâmide da arrogância, toda governança é fictícia, marcada pela insensibilidade à realidade humana, social e ambiental – seja interna, seja no entorno.
Conselhos formados por aconselhados, tribunais compostos por subalternos, organismos de regulação capturados por bajuladores; consultorias cínicas enriquecem advertindo o cliente nos termos que ele próprio dita. Assim, o barco segue singrando sem destino, ao sabor dos ventos do lucro financeiro.
“Compromisso com o meio ambiente”? Governança social e ambiental? “Responsabilidade sócio ambiental” e compliance? São, para o vértice, pirotecnias gerenciais.
É nesse “autismo social” que se produz a miragem da impunidade.
Embalado pela impunidade, o vértice da pirâmide segue a lógica do “penso, quero, posso, mando. Não sou punido e ainda ganho. Por isso, reincido”. Um desastre com efeitos perversos.
Há esperança
Porém, o Brasil é composto de milagres.
A arrogância criminosa e o desprezo à vida humana, adotados pelo vértice da Pirâmide da Arrogância, não impediu a base e as camadas intermediárias do mundo corporativo, a Administração Pública e o mercado incontrolável da livre iniciativa, com todo o entrave estrutral, avançassem espetacularmente, aos soluços, trancos e barrancos, rumo ao desenvolvimento econômico.
Todo esse avanço, hoje parcialmente desfrutado pelos brasileiros, deve-se à pujança, resiliência, inventividade e determinação dos que não seguiram pela vertente da soberba – embora a estrurura piramidal tenha destruído alguns e capturado outros.
Os movimentos de massa, ocorridos a partir de 2013, também fizeram e fazem a diferença, abalam a soberba e revelam a covardia instalada no vértice da pirâmide.
Dumping?
A opção pelo barateamento de custos, pelo discurso sem planejamento, é diretamente proporcional à assunção de riscos, seja de dano ambiental, seja de possibilidade de ocorrência de tragédias – financeiras ou humanitárias, seja de se provocar grave crise política e social.
Em economia, quando se analisa o direito de concorrência no mercado, o nome conferido a essa estratégia é dumping.
Na política, é improbidade.
O dumping é prática comercial condenável. Consiste no barateamento de produtos visando atacar a concorrência de forma desleal, reduzindo custos extraordinariamente ou subsidiando a produção de forma a precificar abaixo do valor considerado justo.
O descumprimento de normas trabalhistas, condutas fiscais e encargos sociais, bem como a desconsideração de medidas de prevenção da segurança do trabalho e ambiental, caracterizam o dumping. A opção pela disposição barata dos rejeitos, com alto custo para a sociedade e o meio ambiente, parece seguir a mesma tipologia.
Está na hora de também analisar o comportamento arrogante, o desprezo à política de recursos humanos e a prática abominável de estrangular fornecedores de bens e serviços, como forma de exercer o dumping.
Está na hora de punir corporações e bolsas de valores sem valor nenhum, por mascararem lucros abusivos com propagandas espalhafatosas de ESG não cumpridos, Compliances de Formulário e Responsabilidade Social sem qualquer respeito pelo próximo.
É hora de reduzir a soberba também no discurso político, conferindo ao cidadão o direito de recall. De poder cassar e revogar o mandato do representante político mentiroso; chamar de volta para “reavaliação” popular o mandatário improbo, incompetente ou inoperante.
Soberba, na economia e na política… é crime.
Conclusão
A hipocrisia corporativa se repete na governança pública. Ambas as distorções escancaram portas para a corrupção.
É hora, pois, de buscar uma nova abordagem que destrua a Pirâmide da Arrogância… antes que ela esmague, de vez, a economia, a moral, o mercado, a política, a democracia e os sonhos.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro – Secretário Executivo de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo, advogado (USP), jornalista e consultor ambiental e corporativo. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 24/02/2023
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.