Por Talden Farias*
Lamentavelmente, não são incomuns os casos de imóveis abandonados dentro da realidade urbana brasileira. Há sim na maioria das cidades de porte grande e médio, e agora até nas menores, um número determinado de casas e prédios entregues à própria sorte, sem receber nenhum tipo de atenção ou de manutenção por parte do proprietário ou responsável.
Isso pode se dar por diversos motivos, sendo os mais corriqueiros a incerteza fundiária, o descuido intencional ou a mera desídia. Na primeira situação normalmente existe conflito entre herdeiros e/ou eventuais compradores, de maneira que a titularidade ou a gestão do bem se encontra indefinida; na segunda o proprietário; na segunda o proprietário de um imóvel restrito por tombamento ou cláusula de doação tenta ocasionar a sua demolição por meio de omissões continuadas, pois o terreno nu representa maior valor de negócio; e a terceira é o abandono por mera falta de interesse ou mesmo irresponsabilidade.
Independente de motivação, o fato é que tais bens não cumprem a sua função social, uma vez que o abandono resulta em problemas de ordem ecológica, estética, sanitária e de segurança. Com efeito, um imóvel em descaso é abrigo para marginais das mais variadas espécies, centro para consumo de drogas e vetor de disseminação de doenças – isso para não falar no acúmulo de sujeira e na poluição visual gerados, dentre outros problemas.
Além do mais, como são em regra regiões já dotadas de infraestrutura, contando com escolas, energia, hospital, saneamento básico e transporte público, o prejuízo ao erário é evidente visto que o Poder Público acaba sendo obrigado a equipar outras áreas que não precisariam estar ocupadas ainda.
É sabido que a Constituição da República de 1988 alçou a função social da propriedade ao patamar de direito fundamental e de princípio da ordem econômica, haja vista o que dispõe o inciso XXIII do art. 5º e o inciso III do art. 170, respectivamente[1]. Ademais, ao tratar da política urbana, o § 2º do art. 182 dispôs sobre a função social como pressuposto do direito à cidade e do cumprimento das funções sociais desta[2].
Como não poderia deixar de ser, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Lei Fundamental, e o novo Código Civil (Lei 10.406/2002), editado em seguida, também dispuseram sobre o assunto, respectivamente, nos seus arts. 39 e 1.228[3].
Foi para fazer frente a essa problemática que o essa lei dispôs sobre o instituto da arrecadação de bens, que consiste na perda da propriedade imobiliária em razão do abandono, conforme dispõe o art. 1.275[4]. A norma civil estabeleceu o seguinte a respeito do assunto:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§ 1º. O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§ 2º. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
Posteriormente, a Medida Provisória 759/2016 também dispôs sobre o assunto, tendo a mesma sido recentemente convertida na Lei 13.465/2017:
Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago. (…)
A arrecadação de bens é um procedimento administrativo que deve ser levado à frente pela própria Administração Pública municipal, já que este ente é o responsável pela execução da política urbana, nos termos do art. 182 da Lei Fundamental[5]. Isso implica dizer que esse instrumento deve concorrer para a efetivação das funções sociais da cidade, a exemplo do direito à mobilidade urbana, à moradia e ao saneamento básico, em consonância com o que estabelece o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)[6].
É claro que no contexto específico brasileiro, em razão da enorme desigualdade social e do imenso déficit habitacional, o direito à moradia digna acaba se sobressaindo de maneira bem mais acentuada. Daí a caracterização do instituto como instrumento de política urbana, e mais especificamente como instrumento auxiliar de política habitacional:
Art. 15. Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb, sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes institutos jurídicos: (…)
IV – a arrecadação de bem vago, nos termos do art. 1.276 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil);
Art. 65. Os imóveis arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços públicos, ao fomento da Reurb-S ou serão objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município ou do Distrito Federal.
Cuida-se de um procedimento administrativo por excelência, de forma que a autorização judicial não se faz necessária. O primeiro passo é a provocação inicial, que pode partir da própria prefeitura, do Ministério Público ou de qualquer pessoa física ou jurídica, já que a matéria urbanística é constituída por normas de ordem pública[7]. Em seguida, há que se formalizar a constatação dos requisitos materiais, o que consiste no estado de abandono do bem urbano com os consequentes prejuízos à vizinhança e à coletividade.
Somente então deve ser expedido o auto declaratório de abandono do bem, o que normalmente fica a cargo do setor patrimonial da prefeitura. Após os três anos de abertura do procedimento e mantida a situação que a ele deu origem deverá ser expedido o auto de arrecadação final. O procedimento geral está previsto no art. 64 da Lei 13.465/2017:
§ 1º. A intenção referida no caput deste artigo será presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana, por cinco anos.
§ 2º. O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou distrital e observará, no mínimo:
I – abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação;
II – comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal;
III – notificação ao titular do domínio para, querendo, apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de recebimento da notificação.
§ 3º. A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação.
§ 4º. Respeitado o procedimento de arrecadação, o Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja prontamente os objetivos sociais a que se destina.
§ 5º. Na hipótese de o proprietário reivindicar a posse do imóvel declarado abandonado, no transcorrer do triênio a que alude o art. 1.276 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), fica assegurado ao Poder Executivo municipal ou distrital o direito ao ressarcimento prévio, e em valor atualizado, de todas as despesas em que eventualmente houver incorrido, inclusive tributárias, em razão do exercício da posse provisória.
É evidente que o direito ao contraditório e ao devido processo legal tem de ser respeitado, uma vez que a propriedade é um direito fundamental. Como a natureza jurídica da arrecadação de bens é de processo administrativo, não é possível deixar de observar as garantias processuais das partes interessadas.
À Municipalidade não é dado decidir se procede ou não à arrecadação de bens, pois se trata de ato vinculado se constatado o efetivo abandono do bem urbano. Isso implica dizer que o gestor omisso poderá ser responsabilizado, podendo inclusive responder a ação de improbidade administrativa.
É que a arrecadação de bens é mais um instrumento de promoção do direito à cidade, aqui entendido como a garantia de acesso includente e equitativo ao espaço e à infraestrutura urbana[8]. Em vista disso, por se tratar de um direito fundamental, não é possível abrir mão do cumprimento das funções sociais da cidade.
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] II – propriedade privada; III – função social da propriedade;”
[2] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
[3] Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (…).
[4] Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade: I – por alienação; II – pela renúncia; III – por abandono; IV – por perecimento da coisa; V – por desapropriação. Parágrafo único. Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da propriedade imóvel serão subordinados ao registro do título transmissivo ou do ato renunciativo no Registro de Imóveis.
[5] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (…). Art. 30. Compete aos Municípios: (…) VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (…).
[6] Art. 2o. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; (…).
[7] Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
[8] O marco de surgimento do debate sobre o direito à cidade foi o lançamento do livro “Droit à la ville” pelo filósofo francês Henri Lefebvre no ano de 1968. A partir daí a discussão sobre os direitos ao e no espaço urbano começou a ganhar corpo em vários ramos do conhecimento científico, além da Geografia e do Urbanismo, a exemplo da Antropologia, do Direito, da Filosofia, da Sociologia etc.
*Talden Farias é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.
Fonte: Conjur