Por Luciane Moessa de Souza*
No dia 25 de junho, foi divulgada pela imprensa, com um tom negativo, a celebração de acordo que envolveu a mineradora Samarco, causadora da maior tragédia ambiental brasileira, suas sócias (Vale e BHP Billiton), os entes públicos federais e estaduais com competência na matéria, os órgãos do Ministério Público Federal e estaduais competentes e as Defensorias Públicas Federal e estaduais competentes.
Esse acordo está longe de ser o primeiro nessa matéria, nem mesmo é o primeiro envolvendo o Ministério Público. A sua especial relevância em relação aos anteriores está em que ele aglutina iniciativas que corriam em paralelo para buscar uma solução para a tragédia.
A primeira dessas iniciativas foi a celebração de um acordo no final de fevereiro de 2016 entre a mineradora e os entes públicos federais e estaduais competentes, com a participação (reduzida) da Defensoria Pública da União, mas sem a participação ou concordância de qualquer das esferas do Ministério Público. Esse acordo, que pode até ser chamado de verdadeiro “acordo entre os culpados” pelo desastre (no caso dos entes públicos, a culpa decorre de sua omissão de fiscalização, seja quanto ao cumprimento das condicionantes do licenciamento ambiental, seja quanto à segurança das barragens), trouxe dois pontos principais:
a) o estabelecimento de valores máximos para a reparação dos danos ambientais difusos e dos danos socioeconômicos causados aos diretamente atingidos, no montante de R$ 3,6 bilhões, a serem desembolsados ao longo de 15 anos, além de R$ 500 milhões para ações de saneamento básico nos municípios afetados pela tragédia, mais o ressarcimento aos cofres públicos de despesas extraordinárias decorrentes do desastre (R$ 27,5 milhões ao todo para a União, estados de Minas Gerais e Espírito Santo, cabendo à empresa negociar com cada um dos municípios sobre os danos causados a estes);
b) a criação de uma entidade, a Fundação Renova, para gerir a reparação desses danos. O açodado acordo foi homologado pela Justiça Federal em Minas Gerais e pelo TRF competente, o da 1ª Região. O Ministério Público Federal questionou judicialmente de imediato a celebração do tal acordo, seja porque não foi assegurada a participação dos atingidos, seja porque o valor da reparação não estava embasado em estudos técnicos abrangentes quanto à extensão dos danos — que, por sinal, até hoje estão longe de acontecerem por completo. Teve sucesso, pois, em agosto de 2016, foi concedida liminar pelo STJ suspendendo o referido acordo. Entretanto, a Fundação Renova continuou atuando e implementando, ainda que em parte, as medidas previstas no acordo suspenso.
É bom lembrar que, evidentemente, medidas emergenciais eram necessárias. O caminho natural era, portanto, a celebração de uma série de acordos envolvendo a reparação de danos sofridos pelas vítimas, desde as que perderam a própria casa, quanto a fonte de renda (caso de pescadores), ficaram sem abastecimento de água. E, nesse sentido, tanto decisões judiciais quanto acordos parciais enfrentaram diversas dessas questões. Para esses temas, eram esperados, sim, acordos celebrados logo depois do desastre, acordos cujo cumprimento certamente levaria tempo, sobretudo por conta da própria dificuldade de identificar cada um dos atingidos e mensurar os danos sofridos.
Para abordar, contudo, a reparação dos danos ambientais em si, naturalmente, existe a necessidade de realização de estudos técnicos complexos, e qualquer pessoa que conhece o sistema judicial brasileiro e, mais ainda, que lida com ações coletivas sabe que um caso como esse poderia facilmente levar décadas apenas nessa fase de esclarecimentos fáticos e técnicos (a instrução processual). Assim, a instauração de uma negociação, em si, é um fato positivo, e não negativo, como se quer fazer crer. Além disso, o acordo não extinguiu, como noticiado em algumas manchetes, mas tão somente suspendeu o andamento da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face das empresas, além de não produzir qualquer efeito com relação às ações criminais decorrentes da causação do desastre.
Cabe, porém, analisar criticamente o conteúdo desse acordo, considerando inclusive o tempo já decorrido desde o desastre, ou seja, dois anos e quase nove meses. Cabe ressaltar que o acordo em questão é complementado tanto por outros dois celebrados entre Ministério Público Federal e as empresas em janeiro e novembro de 2017 quanto pelo Estatuto da própria Fundação Renova, que segue os parâmetros previstos no acordo de 2016 entre União, estados e as empresas. A propósito, o site do Ministério Público Federal traz uma linha do tempo bastante completa descrevendo sua atuação no caso e alguns documentos importantes, como os acordos parciais anteriormente celebrados entre si e as empresas.
Pode-se afirmar que o acordo possui três elementos/inovações principais:
- reconhecer a Fundação Renova como principal instância coordenadora/executiva das obrigações que venham a ser definidas para as empresas visando a reparação dos danos ambientais e dos danos socioeconômicos causados aos atingidos;
- alterar a governança da Fundação Renova para inserir a participação dos atingidos, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ainda que de forma minoritária e sobretudo em órgãos que não possuem competências decisórias/executivas, bem como criação de algumas instâncias específicas para representá-las, quais sejam, as comissões locais e as câmaras regionais;
- previsão de prazo de 2 anos para a conclusão das negociações acerca da reparação integral dos danos, prorrogável por idêntico prazo, e de algumas premissas que conduzirão esse processo.
Além disso, ele incorpora os seguintes pontos de acordos anteriores:
- afastar os limites de valores previstos no acordo de 2016 relativos à reparação dos danos pela previsão da reparação integral, tal como determinado pela legislação (ponto que já estava previsto no acordo de janeiro de 2017);
- criação do chamado “Fórum de Observadores”, como uma instância a mais na fundação, sem atribuições deliberativas, porém; a composição e atribuições do fórum em questão estão previstas no acordo de novembro de 2017;
- a previsão de um valor relativamente baixo de garantias para cumprimento das obrigações, no montante de R$ 2,2 bilhões — isso já estava previsto no acordo de janeiro de 2017;
- a previsão de que será garantido assessoramento técnico aos atingidos, bem como a realização de audiências públicas e consultas públicas livres, prévias e informadas, no caso de comunidades tradicionais, nos termos dos acordos de janeiro e novembro, que definiram inclusive as entidades que conduzirão esse processo: Fundo Brasil de Direitos Humanos e Fundação Getulio Vargas (acordo de novembro de 2017);
- a previsão de que os diversos estudos técnicos a serem realizados serão custeados pelas empresas (ponto previsto em ambos os acordos de 2017);
- a previsão de que a auditoria da Fundação Renova, inclusive sob o ponto de vista finalístico, será realizada por uma das quatro grandes empresas globais de auditoria (KPMG, PWC, Ernst&Young ou Deloitte), o que não parece nenhum pouco adequado porque implica em que essas empresas, cuja clientela é o setor empresarial, é que atestarão o cumprimento (ou não) das obrigações pactuadas. O mais adequado teria sido atribuir essa função a instituições do terceiro setor ou mesmo a um comitê tripartite, com representantes do setor empresarial, dos entes públicos e dos atingidos.
O que mais preocupa no acordo é que, considerando que já houve a realização de diversos levantamentos fáticos e alguns estudos técnicos desde a época do rompimento e que o diálogo entre as empresas e o Ministério Público já se iniciou há pelo menos dois anos, seria de se esperar que já houvesse alguns consensos com relação a pontos fáticos — o levantamento dos danos causados aos atingidos, por exemplo, já deveria estar concluído ao menos em parte. Também já seria o caso de estarem sendo discutidas alternativas técnicas para mitigação dos danos ambientais, bem como alternativas de compensação.
O acordo é extremamente detalhado quanto à estrutura de governança da Fundação Renova, mas praticamente não acrescenta nada quanto ao mérito, remetendo simplesmente ao “processo de repactuação” que deverá ocorrer em substituição ao acordo de 2016, que agora resta prejudicado, com exceção da estrutura básica da Fundação Renova, que permanece, e da previsão de 42 programas para nortear a reparação dos danos, que serão tomados como ponto de partida da repactuação. Naturalmente, o acordo prevê que serão consideradas as medidas já implementadas pela Fundação Renova até agora. Mas o ponto mais preocupante em todo o acordo, em minha opinião, está nos itens VI e VII da cláusula 96ª, que define as premissas da negociação:
“VI – os diagnósticos e estudos realizados pelos EXPERTS DOS MINISTÉRIO PÚBLICO, aos quais não estarão vinculadas as EMPRESAS, e que poderão, além de outros elementos, servir de base técnica para eventual proposta do MINISTÉRIO PÚBLICO de discussão e reformulação dos PROGRAMAS, inclusive no âmbito das CÂMARAS TEMÁTICAS [estas são instâncias consultivas da Fundação];
VII – os diagnósticos e estudos realizados pelos EXPERTS DAS EMPRESAS, aos quais não estarão vinculados o MINISTÉRIO PÚBLICO e o CIF [este é o Comitê Interfederativo, composto majoritariamente de entes públicos, encarregado de monitorar o desenvolvimento dos programas da Fundação], e que poderão servir de base técnica para eventual proposta para as EMPRESAS, inclusive no âmbito das CÂMARAS TEMÁTICAS”.
Como já escrevi e defendi em diversas oportunidades (ver, por exemplo, a obra Mediação de Conflitos Coletivos, resultante de minha tese de doutorado), com apoio na doutrina e na prática norte-americana no assunto (por exemplo, Lawrence Susskind, que cunhou o termo joint fact-finding), quando se tem um processo de resolução consensual de conflito coletivo em curso — não importando se trata-se de negociação direta (como é o caso nesse conflito ambiental da Samarco) ou de mediação (que é a negociação facilitada por terceiro imparcial) —, não se procede tal como em processos judiciais, nos quais um terceiro (o juiz) escolhe quem realizará os estudos técnicos ou levantamentos fáticos pertinentes (o perito) e as partes nomeiam seus assistentes técnicos respectivos. Isso é o que gera o que os norte-americanos chamam de “duelo de especialistas”, que não tem cabimento como estratégia de resolução consensual de um conflito. O caminho deveria ser justamente o oposto:
a) escolha conjunta de quem realizará os estudos técnicos ou levantamentos de dados fáticos necessários (baseando-se em requisitos de competência técnica e de imparcialidade/ausência de conflito de interesses com relação às partes do conflito);
b) definição também conjunta do escopo de cada estudo;
c) definição também conjunta, sempre que houver pluralidade de possibilidades, da metodologia a ser empregada no estudo;
d) definição prévia de como os resultados dos estudos serão utilizados, de modo a evitar posições oportunistas. Isso tudo independentemente de quem custeia o estudo, que, num caso como este, é o causador dos danos, naturalmente.
Adotar esse modelo de realizar estudos paralelos, sem discutir previamente inclusive a sua necessidade/pertinência, a credibilidade de quem os realiza e tudo o mais é abrir o caminho para a possibilidade de inúmeros questionamentos posteriores, assemelhando-se muito ao que costuma ocorrer durante a instrução de um processo contencioso tradicional. Infelizmente, parece até ingênuo adotar um modelo como esse e prever prazo de dois a quatro anos para conclusão das negociações… Como cidadã e profissional da área, só espero que esse item seja revisto enquanto é tempo.
*Luciane Moessa de Souza é procuradora do Banco Central do Brasil, pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora da Soluções Inclusivas Sustentáveis.
Fonte: Conjur