A vergonhosa situação da merenda paulista não é novidade e não pode ser mais minimizada pelo governo
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Desvios de verba na compra da merenda escolar constituem a mais baixa conduta da novela diária da corrupção no Brasil, só equiparada ao opróbrio da malversação de fundos destinados à saúde e fraude na compra e distribuição de remédios.
Casos como esses revelam não apenas o trabalho sórdido de gente desonesta, mas deixam também a nu a degradação moral do Estado, visto a periculosidade homicida de canalhas que, ao invés de estarem atrás das grades, ocupam cargos de prestígio na Administração Pública, pagos com o dinheiro suado de milhões de cidadãos de bem… e ainda gozam da “proteção política do governo…
A impunidade politicamente garantida, estimula a repetição dos episódios, quase sempre nos mesmos moldes.
Foi o que ocorreu com o vergonhoso escândalo da Merenda Escolar, que explodiu no início de 2016, em São Paulo e obedece esquema conhecido.
O butim, segundo as autoridades que o investigam, envolveu políticos do PSDB e do PMDB – partidos que formam a base aliada do Governador Geraldo Alckmin (PSDB). Além de membros próximos do núcleo do poder, suspeitas foram levantadas e provas foram coletadas abrangendo prefeituras, cooperativas e burocratas da Secretaria estadual e secretarias municipais de educação de vários municípios.
Um mesmo modus operandi
O mecanismo parece até constar em uma apostila de corrupção distribuída à larga, bastando preencher formulário distribuído entre corruptos junto à burocracia brasileira…
O esquema-padrão é basicamente integrado pelos seguintes elementos:
1- formação de cartel dos fornecedores,
2- superfaturamento de contratos públicos,
3- distribuição de propinas,
4- repasses dos valores a laranjas e lavanderias,
5- emprego do butim em campanhas políticas ou empresas de fachada dos beneficiários.
Assim, o que poderia parecer uma inusitada novidade no governo tucano, infelizmente não é.
O escândalo do cartel da merenda escolar é fruto de uma estrutura que criminosamente não se altera, embora várias vezes denunciada e reprimida.
Há dez anos o Ministério Público paulista iniciou investigação sobre os cartéis da merenda escolar ( IP 050.07.095123-3).
Em 2007, o MP apresentou denúncia por crime de cartel e corrupção ativa contra vários fornecedores, políticos e administradores, junto à 10a. Vara Criminal Comarca da Capital (proc. 0095123-31.2007),
No entanto, em que pese o enorme interesse público envolvido no caso, o processo, estranhamente, corre até hoje em segredo de justiça, a pedido do governo.
Na citada ação penal de 2007, que dorme nos escaninhos da primeira instância da Justiça Paulista, os Promotores de Justiça reproduziram citação da OCDE, nos termos seguintes:
“Cartéis causam danos a consumidores por meio do aumento de preço ou da restrição de oferta, (…) o que possibilita, sem que saibam, a transferência de riquezas aos membros do cartel. Além disso, os cartéis geram desperdício e ineficiência. Eles protegem seus membros da esposição às forças do mercado, reduzindo a pressão pelo ocntrole de gastos e para inovação, o que acarreta na perda de competitividade da economia nacional” (OCDE – Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico)
Ora, claro está que o que agora explode no rosto de políticos importantes no Estado de São Paulo e nas costas do governo Alckmin, não se trata de fenômeno ocasional ou isolado. É, isto sim, mais do mesmo processo de concentração econômica inserido no esquema da merenda escolar tucana.
Esse fenômeno de concentração econômica é conhecido, já foi analisado e é periodicamente investigado. Está impregnado em uma das mais caras atividades de interesse da cidadania: a alimentação das crianças nas escolas, como reforço à melhoria da produtividade de aprendizado delas na rede básica de ensino.
Há quem cinicamente alegue que “o caso já está sob investigação na esfera policial e no Ministério Público”, fato que justificaria governo e base política “lavarem as mãos” (haja sapólio), não se obrigarem a agir.
No entanto, a ação policial, por si só, face à circunstância histórica e sistêmica acima constatada, equivale a “enxugar gelo”. Por óbvio que o processo de corrupção é mais profundo e estrutural, obrigando sim o governo a agir.
O problema demanda atuação analítica e firme dos órgãos de fiscalização e controle, nas três esferas de poder.
Ocorre que esses órgãos estão demonstrando sua inaptidão para lidar com fenômenos dessa magnitude.
Há um verdadeiro desmanche em curso na estrutura institucional do Estado Brasileiro e paulista e esse desmanche afeta a capacidade de investigação e repressão do cartel mais canalha da corrupção paulista, o da merenda escolar.
Vamos observar o que tem ocorrido com os principais atores que deveriam estar empenhados na resolução do escândalo em favor da cidadania.
Assembleia Legislativa: o túmulo da política paulista
A Assembleia Legislativa do Estado tem obrigação constitucional, institucional e moral de apurar o câncer, que pelo visto corrói de há muito a estrutura de distribuição da merenda escolar do governo tucano.
Para tanto dispõe o parlamento paulista de competência inquisitorial e persecutória, concentrada no instrumento da Comissão Parlamentar de Inquérito.
A Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada, no entanto, tardiamente e de forma vergonhosa. Foi necessário pressão forte da opinião pública e até mesmo a invasão do Palácio 9 de Julho por estudantes secundaristas, para que o constrangimento obrigasse indivíduos exercentes de mandato popular a cumprir com o dever de investigar o óbvio…
A Assembleia Paulista, encerrada em uma caixa de mármore, revela ser mesmo o túmulo da política paulista e o mausoléu do legislativo brasileiro.
O mais irônico, é que a ALESP é dos poucos parlamentos estaduais com competência constitucional para exercer fiscalização e controle da Administração do Estado, possuindo inclusive comissão permanente instalada, a qual, simplesmente se omitiu ante a questão.
Mas o opróbrio legislativo não cessou com a instalação a contra-gosto da Comissão Parlamentar de Inquérito.
As sessões correm a passo de tartaruga e, a necessidade de desviar o foco político do Palácio dos Bandeirantes, faz com que parlamentares criem factoides a cada minuto.
O último, antes do recesso, veio da lavra do próprio presidente da Comissão.
Segundo o Portal G1, na última terça-feira (28 de junho), às vésperas de terminar o período semestral do legislativo e sobrevir o recesso parlamentar, o presidente da CPI da Merenda, Marcos Zerbini (PSDB), expressou juízo prévio, manifestando-se pela inocência do presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Fernando Capez (PSDB).
Capez foi citado em delação premiada, teve um de seus assessores preso na operação e, com isso, foi abrangido pelas investigações.
Não se pode fazer juízo prévio condenatório de ninguém, muito menos do Deputado Capez – cuja trajetória profissional, inclusive no Ministério Público paulista, remete a posição completamente oposta à suspeição que recai sobre ele.
No entanto, o presidente da CPI, que de forma alguma poderia fazer juízo prévio sobre o caso, a título de se pronunciar pela inocência do Deputado Capez, o expôs ainda mais sob os holofotes da mídia. Em verdade, Zerbini não tinha qualquer interesse no seu colega parlamentar e, sim, em afastar os mesmos holofotes do Palácio dos Bandeirantes – o grande mudo em toda a história…
Em seu jogo dissimulado, Zerbini “defendeu” o colega de partido: “Eu sei que quem foi acusado de forma injusta tem desespero grande em provar sua inocência”. Afirmou ainda, segundo o G1, que “o dano causado à imagem de Capez é um dano que não pode ser revertido mesmo comprovando sua inocência” (sic).
Ao ser questionado por jornalistas sobre a afirmação, o deputado alegou ter sido “mal compreendido” e afirmou que “quem se declara inocente é o próprio presidente da Alesp”.
Único membro da oposição na CPI, o deputado Alencar Santana (PT-SP) entendeu que a declaração de Marcos Zerbini “deixa evidente as intenções da Comissão”. Para o deputado, inocentar um acusado em delação sem sequer ter escutado testemunhas ou ter acesso aos documentos do Ministério Público e da Polícia Civil é pré-julgamento com finalidade definida: “blindar Capez”.
No entanto, a condução a passos de lesma da CPI, e manifestações como as executadas pelo seu presidente, apontam para o contrário – algo típico da tucanagem paulista: elegeram Capez como o próximo bode expiatório e irão fritá-lo lentamente…
Enquanto isso, o câncer permanece intocado na rede de ensino paulista, apenas renovadas as células cancerígenas…
Antes da desastrada declaração, o presidente da CPI já havia dito que só começaria a escutar testemunhas quando tivesse acesso e estudasse os documentos da Polícia Civil e do Ministério Público. Depois, veio a escolha do Relator da CPI, um governista de carteirinha, em um colegiado que já conta com o presidente e vice-presidente como aliados do governador. O deputado Estevam Galvão, do DEM, historicamente alinhado ao PSDB, só reforça o quadro de fracasso institucional.
Assim, vale a famosa frase do Barão de Itararé: “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”…
Tribunal de Contas: leão sem dentes
Afora o legislativo, outro organismo importantíssimo, e que inclusive auxilia este Poder, é o Tribunal de Contas do Estado.
O TCE zela pela higidez da operação de combate à corrupção e foi dele a iniciativa de denunciar o cartel do fornecimento da merenda.
De fato, os alertas e início das apurações com relação ao escândalo da merenda escolar tiveram início no Tribunal de Contas do Estado, desde o início do Século, no ano 2000.
O TCE apontou irregularidades na gestão da merenda escolar nos relatório finais sobre as contas de Mario Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, nos sucessivos governos tucanos.
Segundo a Corte, os problemas vão desde o processo de fiscalização na compra e distribuição da comida para os alunos até as condições de higiene das cozinhas nas escolas.
Nos últimos relatórios, o TCE observou que em torno de 15% dos colégios as panelas ficam no chão; em outros 29%, os alimentos estavam guardados fora da geladeira e em 16% não havia certificado de desratização ou desinsetização.
Os problemas sanitários são a expressão do descaso dos governos tucanos para com a educação pública. Eles refletem a corrupção de longa data instalada naquele setor.
Em 2000, ainda no governo de Mario Covas, a aquisição de comida para as escolas virou alvo do Ministério Público e do TCE por conta da proximidade do então governador com o empresário Sérgio de Nadai, dono das empresas De Nadai Alimentação e Convida Alimentação. De Nadai viu o capital de sua empresa passar de 197 mil reais para 4 milhões, entre 1995 e 2001, durante o governo Covas.
A empresa De Nadai detinha também vários contratos para fornecimento de alimentação em presídios estaduais e levou parte deles sem licitação, devido a situações “emergenciais”. Com o tempo, esses serviços se expandiram para diversos municípios. Sempre em prejuízo da alimentação das crianças.
Em um dos relatórios do TCE da época, o conselheiro Antonio Roque Citadini afirmava: “Parece que o governo força situações de emergência”.
Em uma sucessão de escândalos, todos esses anos, em 2009 ocorreu investigação que mostrou esquemas de corrupção e cartel envolvendo cerca de 100 milhões de reais só em propinas. Isso com ações penais e civis, autuações do Tribunal de Contas e novas investigações já em curso…
Parece, assim, que o TCE sabe rugir como um Leão, e cumpriu o seu papel ao alertar para a questão.
Porém, embora tenha alguma eficácia leonina no âmbito dos municípios, o TCE parece perder os dentes quando o assunto é atacar a irregularidade face ao Governo do Estado.
Secretaria da Educação: depósito de alunos…
A responsável primária por controlar, e reprimir o escândalo, é a Secretaria Estadual de Educação, que de há muito já deveria ter estabelecido critérios visando eliminar a repetição de fornecedores cartelizados.
No entanto, há anos que a secretaria se ocupa de verdadeira logística de depositar… gente. Transferir alunos, fechar escolas, ampliar o número de alunos por salas, transtornar os pais dos alunos em corridas incessantes para realizar matrículas… isso quando há aulas e não ocorrem greves.
Parece que os sucessivos governos tucanos enxergam as escolas como… depósito de crianças, que ali estão para não ficar na rua…
Há um desprestígio ostensivo aos professores. Um desprezo às administrações das unidades, às delegacias de ensino… Ausência de planejamento e fixação de um quadro de profissionais capaz de autuar com conforto intelectual.
As sucessivas administrações iluminadas tucanas são curiosas… Insistem em impor “padrões de qualidade” que estressam o corpo docente e ignoram por completo as condições de trabalho e vida dos professores, cada vez mais estressados, desprestigiados pelo governo e desrespeitados pelos alunos, estimulados pelo avanço da criminalidade impune no entorno e dentro das unidades.
Projetos importantes e sérios, como o que se tentou implementar recentemente, ao invés de sofrerem implementação gradual, testada e regionalizada, caem como uma pedra na cabeça de professores, alunos e pais de alunos, originando crises e impasses. Depois, são esquecidos…
Enquanto isso, a estrutura cancerígena e cartelizada se mantém, à custa de duas certezas: os secretários passam, o sistema…fica.
Judiciário e Ministério Público: corpos divididos
O judiciário também deve uma satisfação ao contribuinte paulista, aos alunos, professores e familiares que dependem da rede de ensino pública para formar cidadãos.
Deve satisfação, porém não a dá. O segredo de justiça imposto a uma ação que já dura DEZ ANOS sem qualquer perspectiva de decisão, em primeira instância, sobre o cartel de fornecedores da péssima merenda escolar paulista, já dá a medida do que ocorrerá nas próximas ações que deverão se acumular nos escaninhos de uma das mais paquidérmicas, morosas e caras estruturas judiciárias do mundo…
Está na hora do judiciário integrar forças-tarefa pontuais, visando imprimir celeridade às investigações criminais relacionadas à corrupção estatal, bem como conferir maior atenção ao processo, quando judicializada a questão.
No âmbito do Ministério Público, embora meritória a investigação, ficou patente que não se cuidou de adotar uma medida de ordem civil, visando corrigir o comportamento gerencial da Administração.
Não basta obviamente a repressão criminal, se o núcleo estrutural permanece encastelado sob a tutela de um executivo pusilâmine, que mantém exatamente as mesmas fórmulas de contratação em sua burocracia.
Passou da hora dos grupos especializados de combate ao crime organizado do Ministério Público, demandarem também, maior integração com o judiciário.
Em São Paulo, definitivamente, sobram promotores dispostos a agir, pululam desencontros de ações e medidas de ordem civil e criminal e… faltam juízes que traduzam todo o esforço de combate à corrupção… em Justiça.
Corpos divididos… quando compõem um só organismo, o da Justiça.
Um governo contaminado pela pusilanimidade…
O escândalo da merenda que explodiu neste ano, põe sob suspeita, até o momento, compras realizadas nos últimos cinco anos em pelo menos 22 cidades do interior do Estado. O escândalo envolve uma cooperativa, chamada Coaf, cujos “vendedores pagavam uma série de lobistas, “os quais diziam para os vendedores que repassariam propinas para políticos”, explica o Promotor de Justiça Leonardo Romanelli, do GAECO de Ribeirão Preto e integrante da força-tarefa montada para investigar o esquema. “Temos prefeitos, deputados federais e estaduais, secretários de educação citados pelos delatores”.
Em 2015 o Governo paulista pagou mais de 11 milhões de reais à cooperativa que fornecia os alimentos das merendas, por diversos contratos – um crescimento de mais de 4.500%, tendo em vista os 238.000 recebidos no ano anterior. Além das suspeitas que recaem sobre licitações feitas pelo Estado com verba do Governo Federal, a Polícia Civil estadual e o Ministério Público acreditam que as prefeituras também recebiam propina para assinar contratos com a Coaf. De acordo com o Ministério Público, as propinas giravam entre 10% e 30% do valor dos contratos.
Portanto, minimizar o problema, ou remeter a questão à esfera judicial, para lavar as mãos sobre o caso, não é atitude que se espere do Governador Geraldo Alckmin. É preciso agir.
No momento atual, quem mais está agindo, são os delatores…
Assim como a Lava Jato, a Alba Branca deve lançar mão das delações premiadas, mas o promotor Romanelli afirma que ainda é cedo para tirar conclusões. “Sem dúvida a delação é uma ferramenta importante para chegar à corrupção no poder público”, afirma. “Mas estamos em uma etapa de confrontar o que disseram nos depoimentos preliminares com os contratos públicos e os documentos apreendidos”.
A Coaf, núcleo do escândalo atual, tem sede em Bebedouro. Seis funcionários da empresa estão presos.
Tudo indica que a companhia fizesse parte de um cartel formado pela Cooperativa dos Agropecuaristas Solidários de Itápolis (Coagrosol) e a Cooperativa de Citricultores de Engenheiro Coelho (Cocer). Em depoimento, Cassio Izique Chebabi, ex-presidente da Coaf, confirmou que havia combinação de preços entre eles, segundo o jornal Folha de S. Paulo.
Adriano Mauro, outro funcionário preso, informou que o lucro dos contratos de suco de laranja é muito alto – “cerca de 90%”, o que permitia “pagamento de comissões”.
De acordo com o delator, “esse esquema só era possível porque os órgãos públicos, ao licitar, se baseavam no preço de supermercado, que se aproximava de 10 reais o litro”. A Coaf, no entanto, vendia por 6,80 reais, sendo que o preço de custo é de 3,70 reais, explica o delator…
Ou seja, por mais que investigue o caso, o Promotor Romanelli e seus colegas de força-tarefa continuarão a “enxugar gelo”, caso não obriguem o governo a deixar de minimizar a questão e reformar a estrutura cancerígena instalada no sistema de contratação da merenda escolar.
Enquanto isso, a merenda continuará sendo servida às crianças nas condições atestadas pelo TCE, acima descritas. Uma comida de pior qualidade que a servida nas prisões do estado.
Afinal, como disse um aluno integrante do movimento que ocupara a Assembleia Legislativa, “governo banana não se indispõe com marginal preso, mas pode impunemente causar mal às crianças”…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.