Por Lobato Felizola
- Estudo revela que 26 projetos de energia eólica no mar do Ceará coincidem com áreas usadas por 342 comunidades costeiras, loteando quase metade da zona de pesca.
- Dependentes do vento para navegar, pescadores temem que as turbinas marítimas dificultem suas rotas e comprometam a pesca, espantando os peixes por causa de ruído e vibrações.
Símbolo do Ceará e presente no brasão oficial desde 1897, as jangadas a vela representam 80% das embarcações pesqueiras no estado, mas podem perder espaço para turbinas eólicas instaladas no mar.
A questão é relevante porque pescadores artesanais que usam barcos não motorizados, como os jangadeiros cearenses, dependem da força dos ventos para se mover no mar – o que pode ser severamente impactado com as mais de 4.300 torres eólicas offshore previstas para serem implantadas a distâncias de 3 a 35 km da costa.
“Imagine uma floresta de aerogeradores gigantes no caminho, obrigando a desvios e percursos mais longos, contra ou a favor do vento, onde antes se podia andar livremente”, reflete Ronaldo Gonzaga, pescador do quilombo do Cumbe, em Aracati (CE), a 150 km de Fortaleza. Além disso, complementa, “imagina o ruído e a tremedeira que o aerogerador vai causar no mar. O peixe que costumava ir para lá não vai aparecer mais.”
É por essa razão que, segundo Adryane Gorayeb, coordenadora do Observatório da Energia Eólica da Universidade Federal do Ceará (UFC), ainda não existem parques eólicos offshore operando abaixo da Linha do Equador. “Os impactos em mares tropicais, que possuem ecossistemas, correntes e profundidades distintas dos mares do norte, ainda são desconhecidos”.
A incerteza inquieta pescadores, que têm se mobilizado contra o avanço das eólicas.
Batalha contra eólicas não é nova
Rodeada por fazendas de camarão e uma pequena faixa de manguezal que resiste ao avanço do mar na foz do Rio Jaguaribe, o quilombo do Cumbe, de mil habitantes, já lidou antes com a chegada da indústria eólica em seu território. Em 2009, 67 turbinas foram instaladas nas dunas em torno da comunidade, restringindo o caminho entre o povoado e a praia.
“Só conseguimos o acesso depois de quatro anos de luta e protestos que paralisaram a usina”, lembra Gonzaga. Ele e dois colegas tiveram que assinar um termo assumindo a responsabilidade – e não a empresa – por qualquer acidente ao atravessar as dunas entre torres e cabos elétricos. “Mesmo com esse absurdo, acatamos porque precisávamos fazer nossas atividades de pesca e lazer.”

Assim como o Cumbe, outras comunidades tradicionais costeiras convivem com os efeitos da expansão eólica. De acordo com o Observatório da UFC, 90% dos parques eólicos do estado estão a até 25 km do mar, em áreas de praia, restinga e mangue, com algumas turbinas a 100 metros da água. Agora, a preocupação é que os impactos em terra se repitam no mar, após a sanção da lei que regulamentou a energia eólica offshore em janeiro.
No Cumbe, a subestação do parque eólico fica dentro da comunidade, que nunca recebeu qualquer benefício. “Diziam que o Cumbe era o maior produtor de energia eólica em 2009, mas nossa conta de luz nunca barateou, mesmo com a linha de transmissão passando sobre nossas cabeças”, reclama o líder comunitário João Luís Joventino do Nascimento, que passou a ser conhecido como João do Cumbe por defender o próprio território. “Não justifica essa invasão de usinas eólicas destruindo vidas com uma energia que nem é para nós.”

Projetos eólicos x pescadores artesanais
Depois de lutar contra as eólicas em terra, agora será a vez de enfrentar as turbinas no mar.
No Brasil, ao menos 103 projetos eólicos offshore aguardam licenciamento no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com potência total estimada em 244,56 gigawatts (GW). Esse valor é maior que toda a eletricidade gerada hoje no Brasil (208,93 GW), sendo quase metade de hidrelétricas.
Tal qual na exploração de petróleo, os parques eólicos offshore só podem operar após o leilão das áreas marítimas da União. A Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) estima que o primeiro aconteça em 2025, com início das atividades para 2031.
Metade dos empreendimentos offshore será no Nordeste, onde os ventos constantes garantem maior eficiência das turbinas. No Ceará, 26 projetos sobrepõem zonas de pesca artesanal usadas por pelo menos 342 comunidades tradicionais, segundo uma tese de doutorado do Observatório da Energia Eólica da UFC. São grupos quilombolas, indígenas, pescadores e extrativistas, como o Cumbe, que mantêm relação direta com o mar há gerações.
“Pensamos na democratização energética e em um futuro com energia limpa, mas que leve benefícios e melhorias de vida para todas as pessoas, especialmente aquelas que recebem esses empreendimentos em seus territórios”, alerta Gorayeb.
“Mais uma vez, os países do Sul Global estão se tornando uma zona de sacrifício para as economias imperialistas. É o Nordeste que vai salvar a descarbonização da matriz energética da Europa às custas dos povos e comunidades tradicionais, aprofundando o racismo ambiental nessa recolonização da zona costeira”, resume João do Cumbe.

Além de alimentar e sustentar milhares de famílias, a pesca artesanal é crucial para a economia do Ceará, representando quase 50% da exportação de pescado, informou à Mongabay a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado. Porém, o Brasil não realiza monitoramento do mercado interno e está há 14 anos sem uma estatística pesqueira oficial.
“Como vamos industrializar o mar em termos de produção de energia sem saber o que perderíamos ao retirar essas áreas produtivas, principalmente para nossa segurança e soberania alimentar, mas também para o comércio interno e externo?”, questiona Gorayeb.
De acordo com uma nova cartografia social da pesca artesanal na zona costeira do Ceará, os pescadores atuam em uma vasta área de 37.260 km² – o equivalente a um quarto da área terrestre cearense. A atividade se estende até 90 km da costa e abrange mais de 200 espécies-alvo, como tainha, camarão, lagosta, garoupa, atum e polvo.
Enquanto isso, as usinas eólicas offshore já lotearam 17.280 km² dessa mesma área – quase metade. O Ibama negou a licença de mais dois projetos: um por inviabilidade ambiental e o outro por documentação incompleta.
Próximo ao Cumbe, pelo menos três projetos estão demarcados no mar, mas nenhuma empresa consultou a comunidade, afirma João do Cumbe. Isso contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a povos indígenas e tribais, incluindo quilombolas, o direito à consulta prévia, livre e informada sobre empreendimentos que afetem seus territórios.
João do Cumbe reforça a importância das comunidades costeiras. “Se a agricultura familiar garante comida saudável na mesa do trabalhador, é a pesca artesanal – com suas jangadas a vela – que leva o peixe fresco ao prato, não a indústria. Além disso, somos nós que cuidamos e preservamos o meio ambiente”.

Hidrogênio verde
Atualmente, o Nordeste já é autossuficiente em energia eólica, com suas usinas terrestres responsáveis por 92% da produção no país, conforme a ABEEólica. Em 2023, além de suprir todo o consumo nordestino, 38% do excedente foi exportado para outras regiões. Por isso, os projetos offshore têm sido associados à cadeia produtiva do hidrogênio verde, que desponta como uma alternativa limpa de energia.
Com metas globais de descarbonização cada vez mais próximas, o Brasil aprovou nos últimos meses cinco leis relacionadas à energia eólica, hidrogênio verde, biocombustíveis e ao mercado de carbono.
“O Brasil precisava muito criar um aparato regulatório que não se resumisse só a uma lei para eólicas offshore, para fazer aquilo que o nosso presidente chama de industrialização verde e se colocar fortemente no cenário da transição energética como uma liderança relevante”, disse à Mongabay Elbia Gannoum, presidente executiva da ABEEólica.
A produção de hidrogênio verde consiste em utilizar a eletricidade gerada pelos parques eólicos offshore para realizar a eletrólise da água, que separa o hidrogênio do oxigênio. Três vezes mais eficiente que a gasolina, o hidrogênio ainda abastece a indústria de aço, fertilizantes e transporte de longa distância. Apesar do potencial, menos de 1% da população global tem acesso à tecnologia atualmente, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA).
“As grandes vantagens de produzir hidrogênio verde no Brasil são a alta participação de renováveis na matriz elétrica, especialmente no Nordeste, a disponibilidade de terra e água, um cenário geopolítico mais favorável e o potencial de um mercado interno comprador”, explicou à Mongabay Fernanda Delgado, CEO da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV).
Segundo Gannoum, da ABBEólica, não haverá projetos offshore exclusivos para o hidrogênio devido à sua demanda contínua. “As plantas exigem fornecimento 24/7 através do Sistema Interligado Nacional. O Brasil já pode produzir o melhor hidrogênio verde do mundo, basta conectar ao sistema”, afirma.
Pioneiro em atrair investimentos renováveis, o Governo do Ceará vê o hidrogênio verde mais como uma oportunidade econômica do que ambiental. O “Dia Estadual do Hidrogênio Verde”, em 17 de novembro, foi criado após o estabelecimento de um corredor da cadeia desse combustível, com produção no Complexo Portuário do Pecém, a 60 km de Fortaleza, e distribuição pelo porto de Roterdã, o maior da Europa.
O porto holandês, que detém 30% das operações de Pecém, fará o escoamento do hidrogênio verde para mercados da União Europeia e Reino Unido. Além do Ceará, outros estados nordestinos têm investido nessa nova tecnologia, como Rio Grande do Norte e Piauí.
Na logística intercontinental, o hidrogênio é convertido em amônia verde, que adiciona nitrogênio capturado do ar. A amônia é líquida à temperatura ambiente, o que facilita seu transporte, ao contrário do hidrogênio puro, que exige alta pressão ou temperaturas muito baixas. Ao chegar ao destino final, a amônia é novamente transformada em hidrogênio.
Esse processo demanda mais energia renovável e amplia a necessidade de infraestrutura. “O país precisará aumentar sua produção de energia e investir mais. As eólicas offshore serão cruciais para garantir um hidrogênio mais competitivo”, destaca Gannoum.
Fonte: Mongabay Brasil
Publicação Ambiente Legal, 04/05/2025
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.