Falta de saneamento básico afeta a saúde, o desempenho escolar da criança e a produtividade na vida adulta
Falta tudo, só não falta lei…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Para muitos moradores dos nossos centros urbanos, saneamento se resume à conta mensal de água e à vetusta “taxa de lixo” no IPTU.
No entanto, basta ir até a periferia de qualquer um desses centros urbanos para entender as graves consequências da falta de saneamento básico nessas regiões — e, mais ainda, na maior parte do nosso território.
Passados vários mandatos presidenciais e vários governos estaduais, virando a década desde as edições da Lei de Política Nacional de Saneamento (Lei Federal 11.445/2007), do Decreto regulamentador da PNSB (Decreto Federal 7.217/2010), da Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal 12.305/2010) e do festejado Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020 – que atualizou a legislação anterior), 51,2% das residências brasileiras ainda não possuem rede coletora de esgotos.
Dados atualizados da Agência Nacional de Águas revelam que 52% dos esgotos do país são coletados e tratados, mas apenas 45% da carga orgânica diária gerada (aproximadamente 4.150 toneladas), é removida pelas 2.950 Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs), existentes, antes dos efluentes serem lançados nos corpos d’água.
O restante, mais de 5 mil toneladas, ainda alcança os corpos hídricos in natura.
Mas, no “mundo das normas que tudo resolvem”, a Resolução Conama 430 (2011) prescreve o tratamento de pelo menos 60% do DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio) antes do lançamento. No mundo real, no entanto, apenas 38% dos municípios possuem uma estação de tratamento.
Apesar da criação do marco legal — estabelecendo regras mais claras quanto à titularidade e forma de prestação dos serviços, o esperado engajamento de governos e do setor privado mantém-se tímido, em especial na construção de redes e sistemas de saneamento (esgotamento sanitário, abastecimento de água e destinação de resíduos).
Saneamento: serviço essencial e estratégico para a economia
A inércia é evidente. A implementação da política de saneamento revela deficiências técnicas, jurídicas e econômicas. Revela também ausência de vontade política, de planejamento estratégico e de investimentos. Algo inacreditável para um país “continental” que precisa de algo que é básico para transformar a vida de milhões de brasileiros.
Estudos realizados pelo Instituto Trata Brasil e pelo CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), há muito demonstram que o avanço no saneamento básico melhora a saúde, evita doenças e mortes, amplia oportunidades econômicas e soma riquezas país afora.
A conclusão dos estudos segue atual: se todos os brasileiros tivessem acesso ao saneamento, a renda per capita do país aumentaria em cerca de 6%.
O Brasil ainda ocupa o 112º lugar entre 200 países no ranking global de saneamento.
Alguns números ilustram a precariedade:
- 87,3% da população tem acesso à água potável (antes, 82,4%)
- 51,2% possui esgoto coletado (antes, 48,1%)
- Apenas 45% do esgoto coletado é tratado (antes, 37,5%)
- As perdas na rede de distribuição de água caíram para 35,2%
- 5,7 milhões de brasileiros ainda não têm banheiro
Em 2023, houve 318.500 internações por diarreia, sendo 122.800 crianças menores de 5 anos.
As maiores cidades despejam diariamente 5,1 bilhões de litros de esgoto sem tratamento.
Defasagem humilhante
Na primeira década do século XXI, apenas 14% das grandes obras de saneamento foram concluídas até 2012. Nesse ritmo lento, que ainda permanece passada uma década, a universalização só ocorrerá por volta de 2122.
Enquanto isso, a Índia construiu 110 milhões de banheiros em 10 anos, beneficiando 600 milhões de pessoas e superando o Brasil.
O resultado, somado à diferença de volumes populacionais, é humilhante: 58% dos indianos vivem hoje em casas com esgoto tratado, contra 54% dos brasileiros.
m 2000, na virada do século, estávamos 30 pontos percentuais à frente da Índia.
Em 2000, apenas 6% dos moradores da Índia tinham acesso a saneamento básico, ante 36% dos brasileiros. Em 2010, os números já haviam passado para 26% e 40%, respectivamente.
A Índia atingiu o mesmo patamar do Brasil em 2021, antes de ultrapassar os brasileiros no ano seguinte…
Perda de produtividade
Os efeitos da falta de saneamento fragilizam a manutenção da mão de obra nacional, senão vejamos:
- 217 mil trabalhadores se afastam todo ano por doenças gastrointestinais;
- 11% das faltas laborais estão relacionadas à falta de saneamento.
Por sua vez, o saneamento por si só induz profundas alterações no quadro de desenvolvimento, senão vejamos:
- O acesso à rede de esgoto reduz em 19,2% as faltas ao trabalho;
- Crianças com acesso ao saneamento têm 18% melhor desempenho escolar;
- Cada R$ 1 investido em saneamento economiza R$ 4 em saúde pública;
- A produtividade do trabalhador com acesso à rede de esgoto cresce 15,5%, e seu salário 4,2%;
- Imóveis com saneamento valorizam até 21%.
Só a manutenção planejada da rede existente, por si só, ao impor redução de 10% nas perdas com vazamentos e fraudes, poderia gerar R$ 1,3 bilhão em receita para operadoras.
Falta de cidadania
Mesmo com verbas federais e linhas de crédito disponíveis, o cenário ainda é marcado por burocracia, judicialização, e um despreparo técnico e institucional que afugenta investimentos privados.
A falta de implementação legal é reflexo do baixo exercício da cidadania, seja pelo despreparo e falta de resposta governamental às reivindicações, seja pelo próprio desconhecimento da população, sobre como a estrutura de Estado funciona em relação ao saneamento.
No estudo mencionado, do CEBDS, efetuado na metade da segunda década deste século, ficou claro que:
- 75% das pessoas entrevistadas afirmaram que, apesar dos problemas, não cobram melhorias nos serviços;
- 59% dos cidadãos entrevistados, afirmaram que reclamações são encaminhadas à Prefeitura ou empresa de saneamento responsável, porém nenhuma medida de melhoria é adotada;
- 68% dos entrevistados, sabe que o Prefeito é o principal responsável pelos serviços da área de saneamento básico;
- 55%, no que se refere à fiscalização, entende cumprir à Prefeitura cuidar do saneamento – 18% entendem cumprir a tarefa ao governo do Estado;
- 1% dos entrevistados citou a existência de uma agência reguladora dos serviços de saneamento, prevista legalmente;
- 13% das pessoas entrevistadas não sabem absolutamente nada sobre a quem recorrer nesse tema.
Os índices revelam falta de educação, de civismo, de conscientização e de organização social e, se repetida a pesquisa hoje, pouca coisa irá mudar nos resultados.
O desprezo por soluções técnicas e jurídicas que não atendam a preceitos ideológicos da burocracia incrustada nos órgãos governamentais é causa determinante para o desestímulo aos investimentos.
A praga da judicialização
A judicialização, por outro lado, é intensa.
Com efeito, é notória a ignorância institucionalizada nos quadros do Ministério Público brasileiro quanto à função social e econômica da Lei de Saneamento e a importância da iniciativa privada na sua implementação.
O bloqueio ideológico, que também contamina a tecnoburocracia estatal, desnatura e traz insegurança estrutural a todo o mecanismo de investimento e planejamento financeiro do saneamento.
O desconhecimento completo do que seja um project finance e a ausência de compreensão dos mecanismos econômicos que sustentam os projetos de estruturação, obstruem qualquer cronograma de atendimento aos padrões de universalização pretendidos pela própria norma jurídica que deveria ser implementada. Aliás, a intensa judicialização dos conflitos regulatórios e do licenciamento revela exatamente isso.
A jusburocracia brasileira, com poucas exceções, possui um pobre entendimento estratégico, carregado de preconceitos, do papel do setor privado na implantação dos serviços de infraestrutura.
Há uma obsessão pela litigiosidade. Algo que antepõe partidos políticos e parlamentares, prefeitos, procuradores, promotores, juízes, administradores públicos e planejadores estatais, pelos mais variados motivos. A doença do “parecerismo” pereniza impasses no ambiente regulatório e faz a festa de assessores, licenciadores e padarias jurídicas… uma simbiose sinistra que demanda efetivo saneamento no meio.
Investimentos em programas de saneamento, não é fato raro, costumam terminar em cassação de mandato (alguns até por motivos justos)…
Esses fatores estão a merecer um profundo e inovador estudo, que se somasse aos vários já apresentados pelos organismos privados, como os mencionados nesse artigo, poderiam causar algum impacto… para além do constrangimento habitual entre instituições.
Conclusão
A estrutura do setor de saneamento básico ainda precisa ser profundamente saneada. Somente assim a legislação sairá do papel.
Enquanto isso, a falta de saneamento continua afetando diretamente a saúde, a produtividade e o desenvolvimento do Brasil.
O saneamento básico no Brasil precisa se tornar uma realidade limpa e saudável para todos os brasileiros, e não o esgoto a céu aberto de fatos lamentáveis, que hoje presenciamos.
* Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado, sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Diretor da AICA – Agência de Inteligência Corporativa e Ambiental. Presidente da Associação UNIÁGUA – Universidade da Água, fundada por Franco Montoro. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD e UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. Foi integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe da mídia Portal Ambiente Legal, Editor Responsável pela Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.
Fonte: The Eage View
Publicação Ambiente Legal, 09/07/2025
Edição: Ana Alves Alencar
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