Não teremos sucesso contra o establishment se matarmos o doente de devemos salvar: o regime democrático brasileiro
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Neste domingo de 19 de abril de 2020, populares estimulados por alas radicais bolsonaristas promoveram uma barulhenta aglomeração em frente ao Quartel General do Exército, pedindo literalmente um golpe de estado, uma intervenção militar, um novo AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. O ato em Brasília, foi seguido de barulhentas carreatas em várias cidades do país.
Como toda tirania, que usa um pretexto justo para justificar-se, os manifestantes em prol de uma, usaram do desconforto geral para com as indefinições de prazo da quarentena, imposta aos cidadãos brasileiros em vários estados, e as notórias manobras fisiológicas que envolvem a política e até o judiciário nacional, para impulsionar uma demanda insana contra o regime democrático. Esticaram a corda até o limite do rompimento.
Nessa ação, lamentavelmente, os insanos contaram com a presença inconveniente e imprudente do Presidente da República, que ousou fazer comício em frente ao QG da força armada da qual é comandante em chefe.
Embora não tenha assumido no discurso o que lhe pediam expressamente os militantes, a simples adesão do líder á manifestação já serviu para gerar mais uma (das várias) crises institucionais decorrentes do seu comportamento.
O tiro saiu pela culatra
Os que apostavam no rastilho de pólvora aceso a partir das manifestações, surpreenderam-se com o banho de água fria, demonstrado na clara atitude de desconforto e desengajamento das FFAA para com o processo de radicalização populista.
Além de permanecerem impassíveis, os militares que ousaram se manifestar por meio dos seus generais na reserva, condenaram a ação e reafirmaram o compromisso da Força com a Pátria e a Ordem Constitucional – não com a figura política de quem quer que seja.
A presença de Bolsonaro na manifestação gerou previsível e forte repercussão negativa entre políticos, ministros da Suprema Corte, ministério público e entidades civis. Mas também gerou desconforto generalizado na opinião pública, e esse desconforto foi rapidamente aferido pela equipe de ministros militares que compõe o gabinete da presidência.
Os ministros militares tiveram que agir rápido, na mesma noite do dia 19 e… o resultado foi um Bolsonaro irritado, pela manhã, porém reafirmando seu compromisso com o regime democrático e o respeito ás instituições da República.
No entanto, o desastre já estava registrado… pelas instituições da república, e competirá ao Presidente adicionar muita água na fervura.
Os manifestantes não apenas subestimaram a capacidade de discernimento das forças armadas, como não atentaram para o fato do cidadão mediano brasileiro separar o presidente que apoia do ditador lhe querem impingir…
A mídia, por sua vez, somou a natural sopa de má vontade com que costuma cobrir as atividades de Bolsonaro, com o mel proporcionado pelos malucos que fizeram carreatas e agitaram bandeiras em prol de um golpe ditatorial em várias partes do Brasil. Essa junção passou uma imagem extremamente negativa para uma população submetida a um regime de quarentena e assustada com a pandemia – e portanto muito pouco propensa a compreender a desobediência civil explícita nas manifestações prestigiadas pelo presidente.
Assim, ao invés de prestigiarem o exército, as manifestações configuraram um acinte à dignidade das Forças Armadas e um desrespeito à Ordem e à Constituição. O comício do Presidente – a quem compete comandar as Forças Armadas (e não assediá-las), configurou ato indesculpável de desprezo ao regime democrático.
A mensagem final do evento foi prejudicial à institucionalidade da autoridade nacional.
Golpismo manjado e ineficaz
Com efeito, um chefe de estado que faz comício em ato público organizado em desobediência a ordem legal de saúde pública, onde se prega ditadura, intervenção nos demais poderes constituídos e fim do Regime Democrático, não mais preside a República – conspira contra ela.
Apoiar uma manifestação de insanos de fato pode configurar traição ao juramento de posse e conspurcar a Constituição. O ato pode configurar atentado à Segurança Nacional. Se o interesse era combater a corrupção, denunciar os corruptos no parlamento e no judiciário e mobilizar um ataque mais firme ao chamado establishment, a forma escolhida foi péssima.
Quando, no final da tarde, estava clara a arapuca na qual que o presidente da República foi envolvido, os articuladores da manifestação, armaram uma situação de “contragolpe”, trazendo novos factoides a título de justificativa.
Em uma manobra desesperada, resgataram o ex-deputado Roberto Jefferson do mundo dos mortos-vivos para “denunciar” uma articulação envolvendo STF, Câmara Federal e Senado (como se esses poderes não articulassem sobre tudo o tempo todo desde quando existem no Estado Brasileiro – tanto quando o Poder Executivo).
A teoria do golpe travestido de contragolpe, contudo, é manjada. Já foi aplicada, estudada e dissecada o suficiente para não colar mais.
Chávez – que hora parece inspirar os articuladores do movimento populista em prol de uma ditadura, usou o expediente várias vezes. Saddam Hussein aplicou o golpe no Iraque, “reagindo” a um complô. E o presidente Erdogan, da Turquia, afirmou-se como ditador usando do mesmo expediente.
O mais patético dessa situação, é que ela é destrutiva para a própria figura de Jair Bolsonaro – e o desfigura completamente, para longe do Capitão simples e direto, incorruptível e desinteressado do populismo, cuja ideia de combater a corrupção e por em ordem o Brasil, contou com o apoio de mais de cinquenta milhões de eleitores.
A lição é muito simples.
O establishment e seus agentes corruptos, os oportunistas e canalhas, jamais devem ter guarida no sistema justo e moral que todos aspiramos, para o bem do Brasil. Porém, não devem ser expurgados com o sacrifício de nossos princípios democráticos. Terão sua hora e vez.
A natureza popular e democrática do Exército Brasileiro
O dia 19 de abril marca o nascimento do Exército Brasileiro, forjado a sangue, ferro e fogo na Batalha de Guararapes, em 1648.
A data e as circunstâncias da data são extremamente importantes para compreendermos a relação da nossa força terrestre com o ambiente político brasileiro.
O exército surgiu da comunhão de brancos, negros e índios, formado no abandono do território pela coroa portuguesa e, portanto, tem como único vínculo a soberania, a independência e a liberdade. Jamais serviu a interesses estrangeiros ou governantes de ocasião. Não serve a ninguém a não ser à pátria. (*)
Manteve-se o exército brasileiro, desta forma, como um efetivo popular e irregular por séculos. A Marinha de Guerra, por exemplo, tem outra característica – digamos “mais nobre”. Foi a primeira instituição bélica permanente instituída pelo Império Brasileiro, muito antes do exército, que consolidou-se como efetivo regular e permanente na Guerra do Paraguai, graças ao esforço da geração de Caxias. Já a aeronáutica surgiu como força autônoma vinculada ao Estado Nacional, em função da segunda grande guerra, no século XX.
Esse caráter autônomo, de filho do abandono, que marca nosso Exército como uma cicatriz, o torna imune ao golpismo. E isso, ao que tudo indica, não foi bem compreendido pela massa de insanos que se aglomeraram em frente ao quartel general da força, em Brasília, pedindo “intervenção militar” e fechamento das instituições que formam a República, justamente no dia da Batalha de Guararapes.
A má compreensão dos ideais insertos no movimento de 1964, também ficou clara nas manifestações. Jamais os militares “interviram para derrubar as instituições” – eles as libertaram, e também aprenderam que o modo usado, não é um modelo a ser replicado.
Compreendendo a atitude de Bolsonaro
O gabinete de ministros militares postados na Presidência, que tem atuado como um verdadeiro poder moderador (**), mais uma vez foi na calada da noite se reunir com Bolsonaro, resultando este fato na mudança de discurso do Chefe de Estado, observada nesta manhã do dia 20.
Mas o estrago já estava feito. O Presidente foi imprudente ao passar da linha de impedimento e a “seita” – dirigida ao que tudo indica pelo chamado “gabinete do ódio”, revelou expressamente seu intento golpista. Esse processo estressante de caráter conspiratório tornou-se evidente nesse período de crise por conta do combate à pandemia do Covid-19 (***).
Há um fato que divide os que buscam compreender a idiossincrasia presidencial. Para alguns, Bolsonaro muitas vezes é mal interpretado por não ter o dom da palavra. Embora condene a forma como o presidente se expressa, o núcleo militar do governo avalia que ele é movido por um “ideal patriótico” e jamais desrespeitaria a Constituição. Na avaliação dessa ala, Bolsonaro reage com agressividade por se sentir injustiçado. O presidente sempre se queixa com militares com quem convive nunca ter havido uma oposição assim a um inquilino do Palácio do Planalto.
Esse comportamento rancoroso é sintomático de um profundo trauma, que está interferindo definitivamente na governança da República.
Bolsonaro precisa conscientizar-se disso e superar o problema o quanto antes.
A saída é a política
Chamo os amigos à razão!
Não é hora de negar a política e, sim, de atuar com política. O caso do impeachment de Dilma, deveria servir de paralelo com a situação atual. E há de fato um paralelo – ambos os presidentes trataram de se isolar desde o início do mandato e, com isso, se desconectaram dos demais poderes da república.
No caso de Dilma, o sectarismo ideológico e a estreiteza de raciocínio contribuíram para a má condução dos negócios da república. A corrupção grassava solta no governo e na base partidária que lhe dava suporte. O presidencialismo de coalizão tomou conta do espaço político e “fez a festa”.
O rancor ideológico dilmista, por sua vez era evidente. E isso a fazia fugir da necessária articulação política com o parlamento.
Há um entendimento absurdo de que articular na política e se alinhar com a corrupção. Agir politicamente, definitivamente não é ceder à corrupção, mas adotar uma conduta magnânima, que compreenda o todo, o diverso e não estimule o rancor, a exclusão.
Escrevi sobre isso com relação à Dilma (****) logo após as eleições… E esse texto, no meu entender, deve valer para Bolsonaro também.
No caso atual, não há corrupção visível e a conduta do presidente, nesse aspecto é muito correta. Os problemas começam a surgir com a forma com que a relação próxima com seus filhos detentores de mandato parlamentar interfere nas suas atribuições diárias e relacionamentos interpessoais com os quadros do governo e da República. A outra ponta do problema está, tal qual ocorria com Dilma, na estreiteza de concepções ideológicas sobre a política. Isso inevitavelmente leva á polarização.
Com efeito, a polarização tornou-se evidente e o governo, hoje, atua com uma máscara de Janus, separando a retórica agressiva do líder, seus filhos e apaniguados, da rotina de governança imposta à Administração Pública.
Por óbvio que essa fórmula tem prazo de validade, e o desastre poderá ocorrer logo à frente, a menos que o presidente tome consciência do que efetivamente legitima seu mandato e, passe a governar para a Nação, e não para o número cada vez mais reduzidos de “iniciados” da seita radical bolsonarista.
O Jornal O Estado de São Paulo, no seu editorial de hoje, 20 de abril, mencionou Michel Temer como o único presidente, neste século, a procurar governar “fora do palanque”. E é verdade
Isso conseguiu mantê-lo no leme mesmo quando bombardeado pela mesmíssima canalha que hora desce o aço no Presidente Bolsonaro. Mas é preciso reconhecer a impressionante capacidade de articular de Temer, que lhe permitiu dar início às reformas de Estado, cuja consecução visa o establishment impedir.
É parar esse processo de reformas o objetivo estratégico do establishment. Pouco importando o piloto da nave reformista.
Escrevi também sobre essa habilidade política de Temer, no meio da crise de governabilidade de seu governo ***** – que ainda vejo como muito mais atacado pelo establishment…que o atual.
Portanto, é necessário um reposicionamento imediato da presidência da república, e um refazimento da postura do Presidente. Caso contrário, o impeachment deverá mesmo aparecer no horizonte como uma ameaça real.
Isso não exime as chefias dos poderes da República, de se conscientizarem da premência de uma nova Constituição e de reformas profundas que eliminem vícios evidentes e preservem o regime democrático do establishment, que o corrói.
É dever de todos nós, e deste governo que elegemos, combater essa doença que se apoderou do país, cujo vírus é o que chamamos de establishment. Mas de forma alguma teremos sucesso, matando o doente de devemos salvar: o regime democrático brasileiro.
O resto…é especulação.
* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Quando a Pátria e o Exército foram Forjados no Fogo e no Sangue”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2017/04/batalha-de-guararapes-patria-e-exercito.html
** PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Buscando em Ordem a Luz no Fim do Túnel”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/buscando-em-ordem-luz-no-fim-do-tunel.html
*** PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Cloroquina é Apenas um Ingrediente no Coquetel de Idiotices do Debate Nacional”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/cloroquina-e-apenas-um-ingrediente-no.html
**** PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Vitória Pírrica”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2014/10/vitoria-pirrica.html
***** PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Impopularidade e Sincronicidade”, in Blog “The Eagle View”, in https://www.theeagleview.com.br/2017/08/impopularidade-e-sincronicidade.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 20/04/2020
Edição: Ana A. Alencar