Acidente ambiental nos anos de 1980 continua ativo, mas natureza se prova resiliente.
Por Raul Delvizio
Na série especial “O Pantanal dos segredos”, que vem sendo publicada pelo jornal O Estado no decorrer desta semana, as belezas naturais e de sua gente impactam e fazem repensar o quanto se entende o bioma. Santuário ecológico, o ecossistema surpreende ainda por servir de abrigo para um dos maiores desastres ambientais de MS, talvez do Brasil. Curioso é que essa ocorrência na natureza seja tão desconhecida – inclusive pelo próprio sul-mato-grossense – mesmo estando em atividade há mais de 40 anos. Nesta reportagem, porém, ela será revelada em detalhes, colocando os pingos nos “is” em suas transformações de abundância e potência.
Quando o Rio Taquari ultrapassa por 200 quilômetros o município de Coxim, seguindo a oeste o Pantanal, a água deixa de ser corrente, some do mapa e dá lugar a um leito assoreado. Desde o fim de 1980, bolsões de areia são vistos em sua paisagem, assim como “morrinhos” de sedimentos que impedem a passagem natural do afluente. Ou assim se imaginava.
Na realidade, essa configuração fez nascer o chamado Payaguás dos Xarayés: de ponta a ponta, aproximados 800 mil hectares de terras permanentemente inundadas. Um “bioma” dentro do bioma. A vegetação de camalote e seu capim, além de árvores típicas, escondem uma imensidão de água cristalina e de vasta vida selvagem, que se espalha por todo canto – relatado na reportagem da última segunda-feira (25).
O Taquari poderia ter secado de uma só vez, se tornando um grande “deserto” no meio do Cerrado após décadas de desmatamento. Mas ele não morreu. A natureza se provou mais uma vez resiliente – como vem sendo há milhares de anos na região – ao espalhar suas águas em direção ao Rio Paraguai e que hoje alimentam e participam ativamente do seu ciclo. Por vezes até se misturam, quando o Rio Taquari assoreado ajuda a “encher” o Paraguai-Mirim (afluente do principal) na seca, banhando corixos e lagoas adjacentes.
Especialistas dividem opiniões sobre se esse processo geológico foi acelerado pelo homem. Localidade pouco povoada, acabou que ninguém divulgou o fenômeno. Mesmo espetacular, o cenário ainda é palco para essa manifestação ambiental, ativa até os dias de hoje.
“Cheia” de potenciais
O passado de gado na região não tem mais volta. Contudo, as mesmas águas que formaram o Payaguás dos Xarayés também trouxeram novas oportunidades. “Sai a economia predatória e entra o turismo de contemplação, voltado à conservação do patrimônio natural e criação de um novo tipo de mercado, mais sustentável”, afirma Nelson Araújo Filho, presidente do Instituto Agwa, organização não governamental sediada no coração dessa terra.
Para ele, uma “janela” de potenciais, que nem a nova versão da novela famosa nos anos 90 vem mostrando. “O brasileiro acha que o Pantanal é tudo igual. Não é. Esse ‘triângulo’ [Payaguás dos Xarayés] foi poupado pelo Taquari que não secou, mas que carregou areias, se escondeu da superfície e retorna como um filtro natural, que chega a clarear as águas a ponto de deixá-las cristalinas”, descreve.
“Não se sabe dizer por quanto tempo permanecerá assim, ‘intocado’, de beleza abundante. Mas, para que tenha continuidade, é preciso estudo e controle, cuidar pensando em mantê-lo como está hoje e muito planejamento pela frente, para o seu adequado uso”, ressalta o presidente.
Todos os objetivos anteriores pavimentam ações do Agwa. Entre elas a captação de imagens via drone (veículo controlado remotamente). A coleta anual de fotografias aéreas desde 2018, por exemplo, vem ajudando a provar certas suposições da região, a começar pela sua origem.
Vivências
Nelson foi montando o quebra-cabeça do Payaguás dos Xarayés por meio das diversas viagens que fez por lá. Começou desde 1999, quando visitou pela primeira vez a Serra do Amolar sul- -mato-grossense. “De lá pra cá, as peças começam a fazer sentido. Passei anos sobrevoando essa zona, conhecendo seus rios, povo e histórias. Só assim foi possível compreendê-lo”, comenta.
Mesmo caso do tenente Gesner Batista Ramos, 56 anos, que há 35 atua na PMA (Polícia Militar Ambiental) de Corumbá. Durante décadas, conheceu e viu de perto as mesmas transformações que Nelson, porém do ponto de vista da fiscalização. “Fui parte da primeira turma de agentes da corporação.
Tínhamos função mais repressiva, pois, em 1987, o mercado desenfreado do couro de jacaré estava em alta. Foi uma guerra total, com troca de tiros e tudo mais. Coureiros foram mortos, assim como colegas de profissão que mal tinham se formado”, relembra.
Histórias de que o capitão Kelvin Valente só ouviu falar. Aos 30 anos, ele acredita que a atual geração de agentes “tem muito a aprender” pondo o Pantanal em prática, ao lado de profissionais como o tenente Batista. “São coisas que os livros não ensinam. Temos hoje uma intenção mais para o orientativo, de conscientização à população, sem esquecer-se de fiscalizar o bioma e os crimes ambientais”, pondera. Atualmente, atividade que envolve desde pesca predatória, incêndios devastadores e seca pelo 4º ano consecutivo.
“Mesmo ele se ‘renovando’, é preciso compreender o Pantanal como um ecossistema finito. Só assim terá anos pela frente. Vieram as recentes situações e o bioma continua de pé. O ser humano não é o ‘interruptor’ da natureza. Na região dos Xarayés, só o próprio Payaguás o é”, finaliza Nelson.
Fonte: Jornal O ESTADO Mato Grosso do Sul e Instituto Agwa
Publicação Ambiente Legal, 29/04/22
Edição: Ana Alves Alencar
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