Por Marcelo Manhães de Almeida e Wilson Levy*
Segundo dados de 2010 do IBGE, 86% dos brasileiros mora nas cidades. O percentual, que deve ser maior passados sete anos da última coleta de dados, evidencia que somos uma nação urbana — mais até do que outros países industrializados, como Estados Unidos, Itália e Japão.
O dado significa muita coisa, para o bem e para o mal. De um lado, sabe-se que a cidade, desde o texto clássico “dominação não-legítima” de Max Weber, não é apenas o palco onde ocorrem relações sociais. Ao favorecer um tipo próprio de integração social, ela aceleraria transformações na sociedade. De outro lado, não se pode desprezar dois dados que a realidade fática faz saltar aos olhos: chegamos a esse percentual rápido demais e segundo um padrão colonial que legou informalidade e conflito para as cidades brasileiras. Isso sem falar no caráter reativo da legislação urbanística, que só se converteu em norma geral em 2001, com a entrada em vigor da Lei 10.257, que instituiu o Estatuto da Cidade.
O cenário é de tensão, e, na democracia, tensões são resolvidas na esfera pública, com debate e tomada de decisão. A decisão, por sua vez, deve estar espelhada em marcos regulatórios, que precisam ser interpretados de forma a respeitar as particularidades próprias do objeto em discussão.
Por isso é importante prestarmos atenção no direito urbanístico, que é o ramo do Direito Público que estuda as normas jurídicas que regulam o território urbanizado, visando disciplinar as funções básicas da cidade: habitação, trabalho, circulação e lazer. Ele pode não ser a tábua de salvação para os problemas da cidade, mas seus instrumentos oferecem boas saídas para enfrentá-los.
Tais instrumentos se baseiam numa visão sistêmica que compreende a cidade como uma realidade complexa, afastando-se da tentação de enxergá-la de maneira fatiada: ora como um conjunto de propriedades normatizadas pelo Código Civil e geradora de arrecadação para o Estado, via impostos, ora como o produto de um direito administrativo preocupado com códigos de obras e rotinas públicas.
Pode parecer um movimento simples, mas não é. Com ele, consolidam-se agendas importantes, tais como a função social da propriedade urbana e a qualidade de vida dos habitantes da cidade, ambas previstas na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, XXIII, e artigo 182), e longe de serem realidade. Indo além, o direito urbanístico permite reinterpretar o conjunto de direitos sociais, notadamente educação, saúde, moradia e transporte, ao agrupá-los como fornecedores do conteúdo básico das funções sociais da cidade, pressuposto que também está no texto constitucional e que pautou os protestos que tomaram as metrópoles brasileiras em junho de 2013.
Debater o direito urbanístico e lutar por sua efetividade interessa a todos. Um direito administrativo baseado em pressupostos jus-urbanísticos é capaz de transcender o caráter sancionador — que autoriza ou proíbe condutas — dessa disciplina para conduzi-la a um patamar de indutora do desenvolvimento econômico e social. Um direito civil alinhado ao direito urbanístico é capaz de agregar uma dimensão coletiva às relações privadas. Um direito tributário capaz de compreender a cidade pode ser um poderoso instrumento de financiamento público e de controle adequado do território, corrigindo distorções e desigualdades mediante mecanismos como a contribuição de melhoria e o IPTU progressivo no tempo.
Sem falar em temas que tocam diretamente a vida urbana: a cultura, em suas mais variadas manifestações, a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a preservação da memória contida no patrimônio histórico, nas dimensões concreta e imaterial, as artes e seu potencial emancipatório.
A segunda década do século XXI ampliou a percepção de que a cidade brasileira caminha a passos largos para a insustentabilidade e a marca desse processo é a degradação das condições de vida no espaço urbano. O início de 2017, por sua vez, renovou as expectativas do povo, com o início de novas administrações municipais. O papel da sociedade civil é produzir as discussões certas, assentadas em pressupostos válidos. E o direito urbanístico tem importante contribuição a fazer nesse sentido.
*Marcelo Manhães de Almeida é advogado, presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB-SP. Especialista em Planejamento e Gestão de Cidades pela USP.
*Wilson Levy é advogado, doutor em Direito Urbanístico pela PUC-SP e membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP.
Fonte: Conjur