Ocupações ilegais são um exemplo de drama socioambiental gerado pelo descaso
Por Vitor Lillo

Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 6% da população (11,4 milhões de pessoas) vivem em ocupações irregulares no Brasil, número que supera o número de habitantes de Portugal, estimado em 10,6 milhões. São dados preocupantes que revelam um drama social que também traz graves consequências para o meio ambiente, principalmente quando se trata de ocupações em áreas protegidas.
Não existem dados precisos sobre o número de núcleos habitacionais em áreas de proteção ambiental (APA) no país. Mas em São Paulo, estado que juntamente com o Rio de Janeiro concentra 49,8% das ocupações ilegais existentes no país, existem exemplos bem conhecidos, seja em áreas densamente povoadas como a região metropolitana da capital ou em áreas de APA como o Parque Estadual da Serra do Mar em Cubatão, por exemplo.
Formadas na primeira metade do século passado como parte das obras que modificaram os rios Tietê e Pinheiros, tema já abordado em matéria recente do portal Ambiente Legal (clique aqui para ler), as represas Billings e Guarapiranga fornecem água para 4 milhões de habitantes da Grande São Paulo. Devido à sua importância estratégica, as áreas das duas represas são consideradas de proteção ambiental para o Estado. Proteção que não se vê na prática.
A situação fica evidente quando se observa o tamanho do problema social existente ali. Segundo levantamentos oficiais, 46 mil famílias residem ilegalmente nas margens das duas represas sem condições mínimas de vida digna. Sem rede de saneamento básico, o esgoto é lançado direto nas águas causando o crescimento de algas e aguapés, que aumentam os custos de tratamento da água.
Para Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da organização ambiental SOS Mata Atlântica, denuncia: “hoje você vai lá no Largo 13, e se quiser comprar um terreno na beira da represa do Guarapiranga, você compra, sem problemas. É muito ruim quando o Poder Público alcança o morador e dá o maior pau na cabeça dele quando, na verdade, o ocupante não sabe de nada. E, enquanto isso, o cara que vende os lotes.”

Mais ao norte, a Serra da Cantareira é mais um triste exemplo. Área transformada parque por decreto do governo estadual de 1963 e depois tombada pela UNESCO em 1994. São cerca de 64.800 hectares que abrangem não apenas a Zona Norte de São Paulo como também os municípios vizinhos de Guarulhos, Mairiporã e Caieiras. Importante fonte de água, abastece cerca de 9 milhões de habitantes.
As ocupações irregulares, tanto de famílias carentes que constroem suas casas em áreas de encostas, quanto de empresários que ergueram inúmeros empreendimentos imobiliários a partir dos anos 1970, desmataram hectares inteiros, deixando apenas 21% de vegetação nativa em pé. Isso gera um grave problema de erosão do solo que se agrava ainda mais durante o período de chuvas.
Outro assunto que preocupa a comunidade da cantareira é a construção do trecho norte do Rodoanel. A obra, orçada em R$ 6,1 bilhões, terá 44 quilômetros de extensão e irá forçar a remoção de cerca de 2 mil famílias que ocupam terrenos invadidos ao longo de seu percurso. Além disso, um total de 112 hectares de floresta nativa, o equivalente a 160 campos de futebol, desaparecerá. A obra recentemente está na mira da justiça estadual e gerou protestos até no senado norte-americano, isso porque parte da verba viria do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), financiado em grande parte pelos Estados Unidos.
Mas muito além do dano ambiental, há também um grave problema de segurança pública. De acordo com as autoridades de segurança, fora os crimes ambientais de despejo ilegal de lixo e extração ilegal de madeira, já se detecta também um alto índice de crimes como roubo de carros e drogas, atividade alimentada pela migração de antigos traficantes expulsos de favelas do Rio de Janeiro.
Descendo pelo sistema Anchieta-Imigrantes, que liga São Paulo ao Litoral Sul, a visão dos bairros Cota aos pés da Serra do Mar, na região de Cubatão, são uma lembrança das consequências do descaso do Poder Público. Sua ocupação começou ainda anos 70, com poucas famílias de trabalhadores do setor industrial. Hoje, cerca de 20 mil pessoas residem naquela área.
Assim como no caso da Serra da Cantareira, as consequências são milhares de pessoas vivendo sem condições mínimas de saúde e saneamento em meio às áreas de vegetação desmatadas, ao lixo despejado ilegalmente e à falta de condições mínimas de saúde e saneamento básico. Nos próximos anos, o governo estadual pretende investir R$ 1 bilhão na remoção de famílias para novos conjuntos habitacionais e na futura recomposição da mata nativa.
O coronel Milton Sussuma Nomura, comandante da Polícia Militar Ambiental de São Paulo, quando perguntado sobre a situação atual das ocupações irregulares, se mostrou realista. “Para ser sincero, acompanhamos [as ocupações em] áreas como o Litoral Norte, Baixada Santista e Região Metropolitana, diria que numa intensidade menor. A gente tem o surgimento de novos núcleos, ampliação dos mais antigos”, afirma

Assumindo responsabilidades
Nomura, policial com anos de experiência no tema, acredita que o poder municipal tem “uma importante parcela de responsabilidade” nos problemas e soluções do combate à ocupação irregular do solo, “de forma que possui instrumentos legais mais efetivos”.
“O que a gente percebe é que em alguns núcleos, você tem um processo de ocupação desordenada do qual o município não dá conta de fiscalizar. A pessoa constrói a casa em alguns dias, o poder municipal não chega a tempo e a ela já está vivendo na casa, agora transformada em uma unidade habitacional, o que inviabiliza, por exemplo, uma ação de desocupação imediata”, explica o coronel.
Já Ana Cláudia Duarte Pinheiro, professora de Direito Ambiental na Universidade Estadual de Londrina (UEL), acredita que conflitos de interesses atrapalham a aplicação da lei. “A maioria das nossas leis são apontadas como abrangentes, modernas. Quando estamos em uma sociedade complexa, temos muitos interesses que se antagonizam e os direitos vêm equilibrá-los; muitos interesses entram em questão e temos problemas com a interpretação da regra”.
É inegável que o problema das ocupações irregulares, em áreas de preservação ou de risco é o problema da sociedade e do poder público que parece querer “varrer” essa sujeira para debaixo do tapete. O descaso, dessa maneira, atuaria como uma espécie de agente da negligência e da confusão entre interesses públicos e privados, a verdadeira raiz desse verdadeiro drama socioambiental.
“Cada um de nós deveria exigir que [o Poder Público] faça sua parte. O maior fiscal do poder público somos nós. Quando nos referimos a marginais, não é que estão à margem da sociedade, mas que vivem nas periferias e sofrem por não ter os seus direitos atendidos”, afirma Ana Cláudia.