Por Simone Silva Jardim
Aos 82 anos e a maior referência viva da geografia brasileira, o professor Aziz Nacib Ab’ Saber é um dos poucos brasileiros que conhece, de fato, esta nossa vasta, rica, mas também sofrida e saqueada Pindorama. Ele não esconde o senso de dever cumprido – e também um riso de discreta satisfação – ao contar que, ainda hoje, é chamado de mal-educado por simplesmente dizer, em alto e bom som, que em vez de considerar tão-somente o valor eleitoreiro dos projetos, governantes e políticos precisam priorizar a seriedade, o método e a visão interdisciplinar nas obras que erguem ou pretendem viabilizar com dinheiro público e privado.
“O caso da transposição das águas do rio São Francisco é emblemático. Está entregue a hidrologistas que nem sequer estudaram a geografia espacial da região. É um completo absurdo esse projeto, pois transpõe águas poluídas e mistura estas com as águas salinizadas de alguns açudes para, depois, todas elas descerem por um rio muito longo, que é o Jaguaribe, A megaobra não vai servir ao propósito de superar o flagelo da seca. Só os idiotas querem fazer nos sertões esse projeto linear, pois teimam em ignorar o fato que a área é habitada. Burocraticamente chamam isso de ‘povoamento difuso’, quando o que se vê é um povoamento real. Tem gente vivendo ali por toda a parte. Faltou planejamento, planejamento bem feito”, leciona o professor Aziz Ab’Saber.
Essas palavras foram ditas em tom enérgico por esse incansável combatente, logo no início da entrevista exclusiva à Ambiente Legal, e seguidas de um alerta: o ilustre geógrafo e historiador, que construiu uma brilhante carreira e cujos artigos e estudos têm sido publicados nas principais revistas internacionais, não teceria mais comentários sobre projetos ou questões polêmicas. “Já sofri demais de excesso de indignação pela pretensão de muitos megaprojetos. Agora vou usar desse espaço para falar sobre algo realmente inédito e que muita gente ainda precisa ter a humildade de aprender: como se faz um planejamento que funciona de verdade”.
A partir de agora, nossos leitores e leitoras terão o privilégio de “assistir” a essa aula magistral do grande mestre Aziz Ab’ Saber, que integra o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, onde recebeu o título de professor honorário. Ele nos fala do criativo e eficiente método de trabalho do paisagista nova-iorquino Garrett Eckbo, pouco conhecido dos brasileiros e cuja única obra disponível é Landscape for living (Hennessey & Ingalls), além de um estudo de circulação restrita e único trabalho que publicou fora dos EUA, intitulado O desafio metropolitano, editado pela empresa estatal paulista de planejamento EMPLASA.
Ambiente Legal – A geografia tem um papel especial nessa visão de planejamento que o senhor vai nos apresentar?
Professor Aziz Ab’Saber – A importância da geografia para estudos básicos de planejamento é essencial. Não dá para fazer planejamento sobre áreas, subáreas, regiões, setores de uma área metropolitana etc., sem que haja um estudo prévio e abrangente dos diversos aspectos da realidade espacial. Os arquitetos e paisagistas foram os primeiros a perceber a importância que os geógrafos teriam para seu próprio trabalho de elaborar projetos. Um grande paisagista norte-americano, a quem tenho como o maior do século passado, Garrett Eckbo, é o melhor exemplo que conheço do que é ser um grande planejador. Ele trabalhou intensamente na metade do século passado.
AL – Como era o método de trabalho do paisagista Garrett Eckbo?
AS – Há que se notar que Eckbo é pouco conhecido dos brasileiros, especialmente os que trabalham com planejamento e meio ambiente. Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, décadas atrás, durante um curso que ele ministrou aqui na USP. Sua perspectiva de trabalho exige a participação do geógrafo nas várias etapas do processo de planejamento. Primeiro, na elaboração de cartas cartográficas convencionais para áreas de qualquer grandeza, feitas normalmente por instituições estatais. Essas cartas possibilitam o primeiro contato com a área em que se pretende fazer qualquer tipo de planejamento. Não revelam detalhes como a ocupação do solo, mas refletem o espaço total em sua condição mais permanente. Eckbo iniciava seu trabalho formando uma Comissão de Visualização, que tomava por base essas cartas convencionais e produzia outros quatro documentos de natureza geográfica: a carta geomorfológica é um deles, que melhor especifica as legendas das cartas convencionais, revelando as particularidades do relevo da área. O terceiro mapa recomendado por Eckbo é o da fitogeografia, ou seja, o que descreve a vida vegetal, os ecossistemas, os bosques, as arborizações etc. Trata-se de uma cartografia típica da acoplagem entre os geógrafos e os botânicos, por causa dos tipos de vegetação que retrata, em bom ou mau estado de conservação.
AL – Professor, quais são os outros dois documentos?
AS – O quarto mapa é a planta em escala propriamente dita, documento cartográfico em que se registra tudo aquilo que está na realidade espacial, como choupanas, casarões e áreas livres. Entra em jogo a acuidade do arquiteto, mas o documento continua sendo de natureza geográfica, sobretudo a escolha dos fatos que devem constar na planta para fins de planejamento. Por último, e não menos importante, o professor Eckbo inteligentemente sugere a construção do mapa de visualização, que contempla a paisagem a partir de pontos diversos de observação. O planejador faz então chegar todas essas cartas às mãos de uma Comissão de Criatividade, à qual cabe pensar no conjunto do projeto, o que precisa ser eliminado ou acrescentado para manter o equilíbrio. Finalmente, Eckbo exigia a formação de uma Comissão de Recursos, pois afirmava que muitos países encomendavam-lhe projetos sem ter verbas para implantá-los.
AL – O Brasil se enquadra perfeitamente nesse rol.
AS – Esse problema é realmente muito sério em nosso País. Eu já recebi muitas críticas por também pensar dessa forma. Meus opositores argumentam que o dinheiro acabará vindo dos muitos organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Unesco. Já disseram até que sou antidemocrático, mas no Brasil quase ninguém da área de planejamento pensa nessa seqüência fantasticamente metódica do Garrett Eckbo. Portanto, não sou eu como geógrafo que estou estipulando quais as etapas de trabalho que levam a um bom planejamento. Um grande planejador, por sua experiência prática, é quem nos mostra que todo esse caminho precisa ser percorrido.
AL – O geógrafo é o planejador ideal?
AS – O geógrafo tem de fazer a crítica aos projetos malfeitos ou que não levam em conta as realidades especificas do espaço total da área de intervenção. Se bem preparado pode, sim, ser um planejador. Ele precisa viajar muito para ganhar essa bagagem de conhecimento. Por esse motivo, o graduando de Geografia não pode só ficar dentro do campus recebendo aulas e pesquisando na biblioteca. Eu pessoalmente acho que a metade do curso deveria prever excursões de registro de campo – mesmo que sofridas – para as diferentes regiões do país. Aí estaríamos engendrando a personalidade de um genuíno geógrafo, somado, é claro, o conhecimento do método de Eckbo.
AL – Que balanço o Senhor faz de seu imenso legado, especialmente em suas áreas de excelência, a geomorfologia e a fitogeografia?
AS – Depois de 64 anos atuando como geógrafo e de ter elaborado inúmeros estudos básicos para planejamento de projetos de pequeno, médio e grande porte, tenho procurado rever todas as minhas participações nessa área. A engenharia pode fazer tudo, como as comportas do Panamá, mas um projeto desenvolvimentista não pode ser feito só pela sua viabilidade tecnológica. Deve, antes, considerar, em pé de igualdade, a viabilidade econômica, social, ambiental, cultural e ética com a Natureza e com toda a sociedade.