Que Dios vela por los pobres
Talvez sy…, y talvez no…,
Pero es seguro que almuerza
Em la mesa del patrón.
Atahualpa Yupanqui
A chuva havia amiudado. Quando saiu do comércio ainda chovia forte, e ele não teve escolha. Se esperasse mais ia chegar muito tarde ao acampamento, e a Zefa precisava do remédio. Era para ter saído mais cedo, antes da chuva, mas a moça que atendia na farmácia do posto de saúde estava sozinha, e a fila era grande. Teve de esperar mais de duas horas, morrendo de medo do remédio acabar. Mas a fé que tinha em Deus Nosso Senhor era grande, e as orações que fez enquanto esperava deram resultado. Havia conseguido a última caixa do comprimido que ia curar, com o amparo de Jesus, aquela tosse comprida que a mulher trazia na caixa dos peitos, soltando um catarro preto, de sangue pisado.
A doença havia espalhado pelos outros acampamentos dos sem terra, na beira daquela rodovia que beirava latifúndios improdutivos cheios de mato, como se fossem as contas dum colar enrolado nos pescoços da miséria, do desespero, da fome e da morte.
De quando em vez uma das crianças magras, de pele cor de cera e tristes olhos sem brilho paravam de pedir comida. Não tinham mais forças para brincar, e ficavam sentadas nos barrancos, olhando os caminhões passarem como se fossem máquinas misteriosas, levando nas carrocerias um mundo de coisas que elas nunca iriam ter.
Na esperança de poderem encontrar um decomer saíam então pelos campos atrás de gabiroba, araçá, jatobazinho ou qualquer outra frutinha do cerrado, competindo com os macacos prego, tucanos, araras e ratos do campo.
Essa situação da meninada preocupava, pois todos eles tinham a obrigação de botar reparo nos filhos de todo mundo. Era criança fraquejar, amolengar o corpinho miúdo, começar a respirar com o fôlego curtinho, tinha que acudir. Era o sinal de que a fome tava comendo ela! Às vezes expeliam uma baba fininha e clara, nuns vômitos sem porquê, com as barriguinhas encolhidas pra dentro, quase encostando no couro da cacunda. Tremura nas perninhas e suor frio com fraqueza, requeria pelo menos meio copo com farinha de mandioca com água e sal, até que se pudesse arrumar um pedaço de mandioca ou de abóbora cozida ou assada no borralho. Isso servia para enganar o estômago até a próxima investida da fome.
Voltou novamente a atenção para o saco que trazia nas costas. Tinha conseguido com a moça da Prefeitura um fardo de arroz, dois de feijão, dois quilos de farinha de mandioca e uma coisa de muito luxo: um quilo de café e um pouco de açúcar. O dono da loja que também vendia ração pra cachorro deu-lhe esse saco grande, de plástico, que não deixava molhar os mantimentos. Percebeu que no fundo dele havia restado uns punhados da tal ração. Ele havia provado o gosto, e viu que se cozinhasse na água quente não ficava ruim de comer. Se o bicho que é mais fraco não morre, gente também não ia morrer se comer a tal ração.
Ajudando o moço do armazém a descarregar a mercadoria do caminhão ganhou uma lata com um resto de banha e, para a caçulinha de três aninhos uma chinelinha de cor verde, enfeitada com florezinhas brancas.
A noite havia chegado e agora sentia frio. O chapéu de palha rasgado deixava a água da chuva escorrer pela cabeça. Os pés estavam ensopados pela enxurrada que entrava pelos buracos das botinas, fazendo doer os furos provocados pelos pregos que, vazando pela sola de couro gasta furavam a pele cavando no couro do calcanhar, como uma verruma.
Ao longe viu as luzes das poucas lamparinas dentro dos barracos de lona plástica. Gostou de pensar que logo chegaria, e iria fazer a alegria daquele povinho sem esperança.
A chuva voltou a aumentar e ele torceu o pescoço do saco, evitando assim que a água molhasse os mantimentos.
Dois dias antes, os peões dos fazendeiros passaram uma boiada em cima da roça de mandioca, abóbora e melancia, plantada no espaço livre entre a estrada e a cerca da fazenda. Aquela plantação iria alimentar os acampados na época da seca, com a farinha e o polvilho que seria o mingau dos menorzinhos, que então estariam desmamando. O pouco que cataram do que escapou da destruição foi dividido entre eles. Agora a certeza da fome fazia o desespero das mulheres. Algumas, mães de defuntinhos sem registro. O que os bichos não esmagaram com as patas foi cortado pelos jagunços dos fazendeiros no facão ou destroçado no tiro, para intimidar e ameaçar. Não adiantou choro das mulheres, os gritos de desespero das crianças e a imploração dos velhos. Os que levantaram as mãos pro céu, pedindo ajuda divina não foram atendidos. Pode ser que o Criador não goste de abóbora, mandioca e melancia. Pode ser que não tenha tempo para aqueles que injustiçados e desesperançados.
Apertou o passo ao ouvir as vozes distantes dos companheiros encolhidos debaixo das barracas.
Foi recebido em silêncio. Entregou o saco com os mantimentos às mulheres. Era noite, mas foram apanhar a lenha seca guardada para acender o fogo. As crianças, deitadas nos jiraus gemiam e, solidários, os grilos no escuro da noite faziam coro às lamentações. Jogaram numa panelona velha e amassada, pedaços de mandioca e moranga com o arroz que trouxera. Tudo cozido na água com um pouco de sal. Um pedaço de uma carne seca indefinida foi lançada na mistura junto com os grãos da ração. Daí a pouco, cada um tinha sua lata de goiabada como prato, e lata de extrato de tomate como copo, comendo aquela mistura quente e abençoada e bebendo a água de uma chuva redentora.
Meiou um copo de lata com o caldo grosso tirado da panela, e foi acudir a Zefa. O peito magro da mulher arquejava, da garganta saia um som parecido com um apito baixo, fino, acompanhado de um ronco fraco, que nem um gato. A mulher engoliu sem reclamar, e parece que o calor da comida sossegou a agonia dela.
Depois aparou com o copo um pouco da água da chuva que escorria da cobertura do barraco, e fez a Zefa engolir um comprimido do remédio. Ela se estirou no jirau, tremendo um pouco. Seu corpo estava frio, molhado do suor que porejava da pele e, com os olhos fundos e sem brilho, parecia olhar o que a luz da lamparina alumiava.
A chuva aumentou, e a água que descia dum barranco próximo ao barraco escorreu pelo chão de terra, formando um lameiro debaixo dos muitos pés descalços.
Um murmúrio no início quase inaudível foi crescendo, ocupando a escuridão. Tornou-se mais alto que o barulho da chuva. Parecia querer abafar os trovões e o vento forte. E como num grito de desespero rompeu os espaços, alargou-se nos horizontes, subiu rumo ao céu. As velhas puxavam as orações, tendo entre os dedos magros velhos terços feitos de sementes e coquinhos miúdos. Na ponta de um destes, um crucifixo de madeira sem a imagem do Jesus Cristo salvador.
Todos clamavam pelo único e último recurso que tinham. Pediam a Deus Pai, criador de tudo e de todos, dono da justiça e amparo dos abandonados, que com o raiar do dia trouxesse a sua proteção, seu amor e seu poder, que é maior que as armas e o dinheiro dos donos do mundo.
E com a fé dos desesperados rezavam, cantavam em louvor ao santos de confiança. Gritavam alto, tentando competir com os trovões e o vento, que com seus ribombar e uivos pareciam querer impedir a chegada das vozes aos céus de Deus.
Quando a barra do dia lançou sua luz atrás do horizonte, as vozes agora fracas, roucas, apenas murmuravam.
Ao longe, junto com o cantar dos primeiros pássaros ouviu-se, ao longe um barulho. No início, como que abafado pela luz do sol que nascia. Era o ronco contínuo, sem intervalo, dos monstros de ferro. Era como a respiração de um ser poderoso que vinha para devorar tudo. E, como sempre maior, mais forte e mais presente que o Deus chamado e sempre ausente. Chegavam os verdadeiros donos do mundo, do dinheiro, da justiça e do poder.
Como se fossem apenas um, levantaram-se. Deram-se as mãos com os corações cheios de desamparo, vazios de esperança. Então esperaram, em silêncio, a chegada dos tratores que iriam destruir o resto do nada que sobrara.
Como uma leva de almas perdidas, seriam espalhados pelo mundo.

*Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.