Silvia Camossa
Morgan observava a pequena Carolina andando de bicicleta. Queria descobrir o ponto de partida do movimento que parecia criar no corpo da menina uma felicidade indizível, somente possível para quem nada ousava temer. Que sorriso era aquele que brotava em seus pés? Que liberdade era aquela que fugia do peito e escorregava pelas pernas? De todas as experiências humanas investigadas por Morgan, o velho anjo torto, andar de bicicleta assumia a feição mais intrigante.
Ele esperava Carolina na saída da escola. Quando tocava o sinal, ela aparecia correndo e voava de volta para casa em sua bicicleta. Morgan se deliciava. Os seres humanos possuem asas nos pés, pensava. Acompanhava a menina e se divertia com uma velocidade que as suas asas não sabiam compreender. Com o tempo, desejou ter em seu próprio corpo aquela sensação. Pode um velho anjo torto aprender a andar de bicicleta?
Certa noite, voou até a montanha mais próxima. Pousou no ponto mais elevado e pediu ao pássaro dos sonhos que amarrasse as suas asas. Não quero mais ser anjo. Quero ser Homem! No dia seguinte, bem de manhãzinha, desceu a montanha andando, experimentou o cansaço do caminho, banhou-se em águas nascentes e se aqueceu no percurso até a escola de Carolina. Viu a garotinha chegar e prender a sua bicicleta no tronco de uma árvore. Esperou o sinal tocar, a aula começar e soltou a bicicleta. Achou a posição mais confortável para se sentar, apoiou o pé esquerdo no chão, o pé direito no pedal, as duas mãos no guidão. E começou a pedalar tremendo. Depois foi aprendendo. Estou conseguindo! Eu sou um Homem! Pensava Morgan enquanto os seus pés descobriam uma estranha alegria circular.
Seguiu pedalando. Os metros de um breve quarteirão permitiram-lhe antever a sensação de ser dono de si mesmo, firme na solidez do chão. Esqueceu que as suas asas estavam amarradas e abriu os braços. Se encantou com a liberdade de sua nova condição, mas logo perdeu o equilíbrio e caiu.
– Machucou, homem?, perguntou o dono do bar em frente à queda.
– Um pouco, respondeu o velho anjo torto, tão assustado, limpando o sangue de seus joelhos machucados no chão.
Morgan se levantou e voltou para a escola empurrando a bicicleta. Prendeu-a de novo no tronco da árvore, soltou as asas e não quis mais brincar. Nem de ser Homem. Nem de pedalar.
Ser gente dói.
Silvia Camossa é escritora e atriz. Autora dos livros “História das ideias do Zé”, “Escolhas que Brilham”, “Sonha, Zé” e “Os amigos do Balacobaco”, publicados pela Callis Editora.