Justiça Federal decide que ICMBio não pode desapropriar áreas para Unidades de Conservação
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
A desapropriação é um dos instrumentos mais afirmativos de controle territorial exercido pelo Estado. Expressa a capacidade do Poder Público intervir no direito de propriedade em prol do seu interesse de ordenamento espacial ou no interesse social.
Segundo o jurista Marçal Justen Filho, a desapropriação é ato estatal unilateral, que pressupõe um procedimento prévio. Trata-se, portanto, do resultado daquele procedimento. É unilateral porque a vontade do poder público se impõe à do proprietário do bem – que poderá apenas discordar quanto ao valor da desapropriação, mas não dela em si (o conflito é resolvido na esfera judicial).
A desapropriação é causa de extinção e de aquisição de domínio, porém não se confunde com transferência do direito de propriedade. O expropriado perde seu direito de propriedade, enquanto o poder público adquire um novo direito sobre o mesmo objeto, sem que eventuais defeitos ou direitos relativos à relação jurídica anterior se transfiram.
Por seu impacto social, a desapropriação sofre intensa regulação e é tutelada pelo Poder Judiciário.
Reza a Constituição Federal, no seu artigo 5º:
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.
A Constituição Federal determina quem é competente para efetuar a desapropriação dividindo-os entre entes capazes de declarar utilidade pública ou o interesse social em causa para justificar a expropriação; e os entes responsáveis pela efetiva desapropriação do bem, ou seja, autorizados a praticar os atos concretos para realizá-la. Assim, pode figurar no pólo ativo da desapropriação o ente federativo – União, Estados e Municipios , sendo possível a estes delegarem por lei sua competência, exceto quanto à produção do ato expropriatório.
Somente a União possui competência para legislar sobre o assunto (art. 22, II, CF).
Já no pólo passivo, denominado de expropriado, encontra-se o particular, o proprietário do bem ou direito objeto da desapropriação. Pessoas jurídicas de direito público também podem ser sujeitos passivos, visto que é possível a desapropriação de bem público (art. 2º, parágrafo 2º, decreto-lei 3.365/41). Entretanto, deve-se ter em mente sempre a autonomia dos entes federados, sendo necessário lei que o autorize. Portanto, o expropriado poderá ser pessoa natural ou jurídica, pública ou privada.
O pressuposto que autoriza a desapropriação é afirmativo do controle territorial. Compreende a necessidade pública, a utilidade pública e o interesse social.
Assim, no exercício de sua função de ordenamento territorial, é claro que o Poder Público possui autoridade para expropriar áreas visando destiná-las à preservação ou conservação ambiental.
O problema, como aliás sempre ocorre quando o assunto é de cunho ambiental, é que o arcabouço legal montado para efetivar essa faculdade de preservação territorial constituiu-se de sequencias de frases edificantes com grande cunho ideológico e pouca efetividade material.
É o caso do ICMBio – o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – autarquia gerada no ventre da Ministra Biocêntrica e excêntrica, Marina Silva, no governo Lula, lotada de boas intenções e desprovida de instrumentos legais que pudesse tornar suas intenções efetivas.
Incumbida de gerir as unidades de conservação federais, e orientar o SNUC, o ICMBio tornou-se uma onça sem garras que… poderá ficar também sem dentes.
Exemplo desse desarme legal é a decisão produzida contra os interesses de ordenamento territorial do instituto, pelo juízo da Vara Federal de Resende do TRF-2 , no Processo em que o ICMBio pretendia desapropriar, para fins de regularização fundiária da principal unidade de conservação do país – o Parque Nacional de Itatiaia, uma propriedade particular no entorno.
Com base na |Lei que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, em especial o § 1º do artigo 11 da Lei 9.985/2000 – o ICMBIO ajuizou ação de desapropriação contra proprietário da região, alegando legitimidade ativa para propor a presente ação de desapropriação. Diz a regra invocada pelo instituto: “o Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei”.
A propriedade era uma casa em lote de 6.500 metros quadrados em área urbana, com registro em IPTU, o que não é nada para um parque onde dos 28.000 hectares, metade, ou seja, 14.000 ainda são de particulares. O interessante é que justamente áreas de fazendas com bois são ignoradas pelo instituto, enquanto as propriedades pequenas sofrem verdadeiro “assédio” institucional. O bairro em questão, Núcleo Colonial de Itatiaia, como pôde verificar a reportagem, é uma área pequena em relação ao parque, com aproximadamente 1000 hectares, sendo sua quase totalidade de propriedades particulares. A urbanização dessa área, aliás, completa 109 anos no dia 5 de dezembro de 2017.
Voltando ao caso, porém, é de se perguntar… onde estava a lei? Que autorização legal tem o ICMBio para … desapropriar?
O resultado poderá definir muitos outros processos similares, que ocorrem Brasil afora, em relação à ação do ICMBio na regularização fundiária das Unidades de Consevação.
A sentença foi proferida no Processo n. 0102271-35.2016.4.02.5109 – 09/09/2016 do TRF-2, publicado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região – extraído da página 2854 da seção Judicial – JFRJ do TRF-2 – Vara Federal de Resende -Boletim: 2016000168.
A seguir, a decisão:
JUIZ FEDERAL PAULO PEREIRA LEITE FILHO
5010 – AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO
44 – 0102271-35.2016.4.02.5109 (2016.51.09.102271-4) (PROCESSO ELETRÔNICO)
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE – ICMBIO (PROCDOR: JOSE ALFREDO BARROS DA SILVA NETO.) x HFP.
SENTENÇA TIPO: C – SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO REGISTRO NR. 000448/2016 .
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JUSTIÇA FEDERAL
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO DE JANEIRO 1a Vara Federal de Resende
JUIZ (A) FEDERAL PAULO PEREIRA LEITE FILHO
AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO
Nº 0102271-35.2016.4.02.5109 (2016.51.09.102271-4)
TIPO DE SENTENÇA: C – EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO
SENTENÇA:
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBIO propõe AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO, para fins de proteção de espaço territorial de interesse ambiental, em desfavor de H.F.P. . Requer liminarmente imissão na posse do imóvel, mediante depósito do valor de avaliação, dentre outros requerimentos relacionados ao objeto da ação. No mérito, pede a transferência dominial do bem para seu nome, mediante a expedição dos competentes mandados translativos ao Cartório de Registro de Imóveis onde se encontra matriculado o imóvel.
Relata não ter havido acordo amigável com o proprietário do imóvel, conforme demonstram as informações prestadas pelos analistas ambientais do Instituto Chico Mendes, em processo administrativo que tramitou para a finalidade expropriatória. Informa, também, a realização de avaliação oficial, tendo sido atribuído aos imóveis o valor total de R$ 378.935,81 (trezentos e setenta e oito mil novecentos e trinta e cinco reais e oitenta e um centavos), englobando terra nua e benfeitorias, atendendo o referido Laudo aos padrões gerais e especiais para técnicas de avaliação.
É o relato do necessário, passo a decidir.
O feito deve ser extinto sem resolução do mérito, por ser o autor carecedor do direito de ação, por ilegitimidade ativa e falta de interesse processual de agir.
Ilegitimidade ativa ad causam
O autor é carecedor do direito de ação por falta de legitimidade ativa ad causam.
Não há previsão legal que confira ao ICMBIO, autarquia federal, competência para desapropriar tampouco para promover desapropriação.
A desapropriação – transferência compulsória da propriedade para o poder público ou seus delegados -é um dos meios mais drásticos de intervenção do Estado na propriedade particular, somente se legitimando nos limites traçados pela Constituição da República_ e nos casos expressos em lei, observado o devido procedimento legal_.
Segundo o § 1º do artigo 11 da Lei 9.985/2000 – no qual o ICMBIO sustenta a legitimidade ativa para propor a presente ação de desapropriação -, “o Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei”.
Entretanto, a lei a que se refere a parte final desse dispositivo ainda não foi editada. Logo, tem aplicabilidade a Lei Geral das Desapropriações.
De acordo com a Lei Geral das Desapropriações, Decreto-lei n. 3.365, de 21-6-1941, podem promover a desapropriação os entes da federação e os territórios, assim como os concessionários e delegatários de serviço público, estes, desde que autorizados de forma expressa em lei ou em contrato:
Art. 2o Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art. 3o Os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de carater público ou que exerçam funções delegadas de poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato.
Excepcionalmente e mediante previsão legal, as autarquias também podem promover a desapropriação.
A Lei n. 9.074, de 7-7-1995, confere à Agência Nacional de Energia Elétrica o poder de desapropriar:
Art. 10. Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, declarar a utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
Outrora também fora investido desse excepcional poder de desapropriar o extinto Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER, conforme artigo 14 do Decreto-lei n. 512, de 21-3-169:
Art. 14. O Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, por ato de seu Diretor-Geral, declarará a utilidade pública de bem ou propriedade, para efeito de desapropriação e afetação a fins rodoviários, e a qualquer tempo, poderá requisitar o ingresso de agente do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, em propriedade pública ou privada, para efetivação de estudos que visem à implantação de estradas ou obras auxiliares, observado o dever de preservação do bem e de indenizar as perdas e danos decorrentes da requisição.
No caso presente, não há previsão legal que confira ao ICMBIO, autarquia federal, competência para desapropriar_ tampouco para promover desapropriação. Nem o § 1º do artigo 11 da Lei 9.985/2000 nem a autorização da Presidência do ICMBIO para o ajuizamento da ação de desapropriação lhe conferem tais prerrogativas.
Tampouco procede a alegação de que “o Decreto de criação do Parque Nacional é a autorização para desapropriação dos imóveis privados no seu interior”, porque não encontra amparo jurídico.
Resta, pois, evidenciada a ilegitimidade ativa ad causam do ICMBIO para desapropriar ou promover a desapropriação do imóvel a que refere este processo.
Ausência de ato que declare o bem objeto da lide de utilidade pública
É imprescindível que o ato que declare a utilidade pública_ de um bem para fins de desapropriação indique o sujeito passivo da desapropriação, a descrição do bem, a declaração de utilidade pública ou interesse social, a destinação específica a ser dada ao bem, o fundamento legal e os recursos orçamentários, destinados ao atendimento da despesa (cf. Rubens Limongi França).
In casu, não foi editado ato administrativo específico e individual (com efeitos concretos) que tivesse declarado o bem objeto da lide de utilidade pública para fins de desapropriação.
Nem o Decreto n. 1.713 de 1937 nem o Decreto n. 87.586 de 1982_, que criou e ampliou a área, respectivamente, do Parque Nacional do Itatiaia, apresentam os requisitos exigidos para o ato de desapropriação_. Seja porque não são específicos para os fins a que se destina a presente ação, seja porque não ostentam caráter individual_, pois não indicam o bem nem o sujeito passivo da desapropriação.
Caducidade
A afirmação do ICMBIO no sentido de que “o Decreto de criação do Parque Nacional é a autorização para desapropriação dos imóveis privados no seu interior, sem estar sujeito à caducidade” (g.n.) também não encontra amparo legal.
O Decreto-lei n. 3.365/1941 prevê a caducidade_ do decreto expropriatório, dispondo que a desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data de sua expedição:
Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará (Vide Decreto-lei nº 9.282, de 1946). Neste caso, somente decorrido um ano, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração.
Parágrafo único. Extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público.
Caso o Decreto n. 1.713, de 18-6-1937 ou o Decreto n. 87.586, de 20-9-1982, tivesse declarado o bem objeto da lide de utilidade pública – o que não ocorreu -, de há muito não mais teriam validade, em razão do decurso de prazo superior a cinco anos, contados da edição, sem qualquer ato concreto visando à desapropriação.
Vícios insanáveis
Constituem vícios insanáveis, que levam à extinção do presente feito sem resolução do mérito, a falta de legitimidade ativa do autor para promover a desapropriação e a ausência de ato declarando o bem objeto da lide de utilidade pública para fins de desapropriação. Desse modo, mostra-se inviável a emenda da inicial.
Registro, por fim, que este juízo, por semelhantes razões, indeferiu a petição inicial da ação de desapropriação ajuizada pelo ICMBIO, autuada sob o n. 0000868-91.2014.4.02.5109 (2014.51.09.0008683). Este feito se encontra na fase recursal.
Dispositivo
Por todo o exposto, INDEFIRO a petição inicial e, por via de consequência, DECLARO EXTINTO O PROCESSO, sem resolução do mérito, com espeque no inciso I e VI do artigo 485 do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015).
As autarquias são isentas do recolhimento das custas (Lei n. 9289/1996, Art. 4º, I).
Sem condenação na verba honorária, eis que a relação processual não se integralizou.
P.R.I.
Resende (RJ), 30 de agosto de 2016.
ASSINADO DIGITALMENTE
PAULO PEREIRA LEITE FILHO
Juiz Federal Titular
Espera-se, doravante, que o Poder Público Federal cuide de definir um marco legal mais razoável, ao invés de insistir na postulação criativa perante a autoridade judiciária…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro das Comissões de Infraestrutura e Sustentabilidade e Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). É Vice-Presidente e Diretor Jurídico da API – Associação Paulista de Imprensa, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e proprietário do blog The Eagle View.
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