Por Vladimir Passos de Freitas*
Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, passou o Brasil por absoluta modificação no seu sistema de governo. Assim, o sistema de Justiça, como não podia deixar de ser, transformou-se radicalmente. O Poder Judicial do Império, com as suas várias instâncias tendo o Supremo Tribunal de Justiça no ápice, cederam espaço a um novo sistema judiciário.
Os detentores do Poder Civil, tendo à frente figuras que marcaram nossa história, como Rui Barbosa e Campos Salles, lutaram pela criação de uma Justiça Federal, nos moldes da existente nos Estados Unidos da América do Norte. E assim, antes mesmo de uma nova Constituição Republicana, surgiu o Decreto-lei 848, de 11 de outubro de 1890, criando a Justiça Federal, composta pelo Supremo Tribunal Federal e juízes federais de primeira instância.
Mas, se juízes federais passaram a existir, com competência para decidir os conflitos de interesse da União, juízes de Direito, agora estaduais e não mais das províncias, precisavam continuar na sua missão de decidir os demais casos. O Brasil poderia ter seguido o modelo de uma Justiça Nacional única, como a Venezuela, também um estado federal. Mas optou pela dualidade de Justiça, tal qual o modelo norte-americano e também de outros países, como a Alemanha, Austrália e o Canadá.
Nos estados, a reestruturação na primeira instância não apresentava grandes problemas. As comarcas continuariam com seus prédios, juízes e práticas, sendo as mudanças pouco significativas. Mas os 21 novos estados membros que compunham a República dos Estados Unidos do Brasil — este era o nome original — criaram novas comarcas na primeira instância e passaram a ter seus tribunais de segunda instância.
No Estado do Paraná, que no Império estava subordinado à Relação da Província de São Paulo, o Decreto nº 1, de 15 de junho de 1891, dispôs que o órgão da segunda instância se chamaria Tribunal de Apelação e seria composto por 5 desembargadores. Todavia, em 1892, o Presidente do Estado foi deposto e editada nova Constituição. Nela o órgão máximo do Poder Judiciário foi denominado Superior Tribunal de Justiça e seus membros receberam o título de ministros. Pouco tempo depois a Lei nº 15, de 21 de maio de 1892, alterou o nome para Supremo Tribunal de Justiça.[1]
Em Santa Catarina, a Constituição do Estado de 1891 estabeleceu, no artigo 47, que o Poder Judiciário seria exercido por um Superior Tribunal de Justiça, com cinco desembargadores, e outros órgãos, tendo o Decreto nº 104 detalhado a estrutura do Poder Judiciário. Em 1892 o Tribunal veio a chamar-se Relação da Justiça e em 1893 passou por uma das mais conturbadas histórias do Judiciário brasileiro. O Presidente do Estado (nome que se dava aos Governadores), insatisfeito com uma decisão do Presidente da Relação catarinense, no dia 8 de abril de 1893, dissolveu o Tribunal e nomeou novos desembargadores. Os demitidos protestaram junto a Floriano Peixoto, Presidente da República, sem sucesso. Posteriormente, foi deposto o Presidente do Estado, fato que ocasionou intervenção federal com a morte de diversas pessoas, entre eles dois magistrados, sobrevindo a recondução ao cargo do antigo Presidente da Relação, desembargador J. R. V. Guilhon, e a manutenção de todos os magistrados, os da antiga e os da nova composição.
No Pará, a Justiça de segunda instância era exercida pelo Tribunal da Relação de Belém, instalado em 1874 e extinto em 19 de junho de 1891, após a Proclamação da República, quando foi criado o Tribunal Superior de Justiça. Sua criação antecedeu a Constituição Estadual, que foi proclamada no dia 22 do mesmo mês e ano. Nesta, o Tribunal foi mantido com o mesmo nome e composto por 7 desembargadores.[2]
Na instabilidade política do início da República, o Rio Grande do Sul teve sua Constituição em 14 de julho de 1891. Todavia, “o golpe que depôs Julio de Castilhos, em novembro de 1891, revogou a Constituição Estadual que havia criado o Superior Tribunal do Estado”. Somente em 1892, com o retorno de Julio de Castilhos à Presidência do Estado, a Constituição tornou a vigorar.[3] Na Lei Maior gaúcha, segundo o artigo 51, § 1º, o órgão máximo do Judiciário era chamado de Superior Tribunal, com sede na Casa da Câmara, Praça da Matriz e composto de 9 desembargadores.[4]
O Poder Judiciário paraibano é narrado no livro “História do Tribunal de Justiça da Paraíba”, tendo a sua primeira Corte sido instalada em 15 de outubro de 1891, sob o nome de Superior Tribunal de Justiça do Estado da Parahyba do Norte, sob a presidência do desembargador Manoel F. C. Andrade.
No Estado de Goiás, a Constituição foi homologada em 1º de junho de 1891 e nela se previa a existência do Superior Tribunal de Justiça, com cinco membros. Tal qual na maioria dos estados, aproveitaram-se os juízes de Direito mais antigos para as novas funções, sendo a escolha do Presidente. Contudo, os primeiros anos da magistratura goiana foram de enorme instabilidade. Revela a história que “Crimes enfrentamento às autoridades, conflitos coronelísticos, falta de magistrados e envolvimento de alguns com as chefias político-partidárias de suas comarcas permaneceram mais arraigados do que no regime monárquico”.[5]
São Paulo antecipou-se ao governo federal, lançando sua primeira Constituição em 15 de dezembro de 1890. Nela se previa a criação de um Tribunal de Justiça, com 9 membros, intitulados ministros. Mas a efervescência política não o poupou da instabilidade. O Presidente do Estado nomeou os nove ministros, mas com a renúncia do Mal. Deodoro da Fonseca eles foram depostos. O Vice-Presidente assumiu a editou Decreto voltando à situação anterior, retornando os desembargadores da Relação até a reorganização da Justiça Estadual, em 1892. Mas foi na Constituição de 1891 que se criou uma inovação significativa, qual seja, a admissão dos juízes de Direito por concurso público (artigo 46).[6] A ousadia gerou revolta de deputados e senadores, tendo sido retirada na Constituição de 1905 e restaurada somente em 1921.[7]
O Rio de Janeiro tem uma situação especial. Com a proclamação da República, “foram separadas a justiça do Rio e do Distrito Federal”. “Em 1891 instalou-se, no antigo edifício da Relação, a Corte de Apelação do Distrito Federal, mais alta instância do Poder Judiciário à época”.[8] O então Estado do Rio de Janeiro teve o seu Tribunal instalado em Niterói, sua capital. Tal situação perdurou até 12 de julho de 1974, quando foi sancionada a Lei Complementar nº 20, determinando a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara.
O Maranhão recebeu a “Relação Maranhense, instalada em São Luís a 4 de novembro de 1813, jurisdicionando do Ceará ao Amazonas e só extinta com a proclamação da República, em 1889”, quando foi implantado o Superior Tribunal de Justiça (1891).[9]
Minas Gerais teve instalada a Relação de Ouro Preto, então capital da província, em 6 de fevereiro de 1874. Com a Constituição Estadual de 1891, instalou sua Corte Estadual, porém mantendo o tradicional nome de Tribunal da Relação.[10]
Sob nomes diversos e desenvolvendo práticas e características próprias, evoluíram os tribunais estaduais até que os seus nomes foram uniformizados na Constituição de 1937 para Tribunal de Apelação e na Constituição de 1945, para Tribunal de Justiça, que até hoje permanece. Todos mantiveram os juízes de paz por décadas, alguns possuíam juízes distritais, outros pretores, que julgavam causas de menor valor ou relevância, sendo que o Rio Grande do Sul e o Pará os mantiveram até a Constituição Federal de 1988.
No que toca à autonomia e independência, é difícil avaliar se os TJs possuem atualmente um grau de autonomia muito maior do que à época da Proclamação da República. Isto passa por períodos diferentes. Por exemplo, ao início a magistratura estadual não tinha as garantias de inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos.
Se por um lado, nos regimes ditatoriais de Getúlio Vargas e dos militares, os Tribunais de Justiça viveram, de diferentes formas, momentos de perda de poder, por outro agora, em plena democracia, eles dispõem de espaço pequeno para grandes inovações. Por exemplo, estão impedidos de criar cargos de pretor, uma experiência exitosa no Pará e no Rio Grande do Sul. Nos concursos, não podem fazer entrevistas pessoais com os candidatos que vão à prova oral, algo que permitia à banca conhecer melhor os candidatos e que, nas empresas, alcança até estagiários.
Em suma, os TJs desenvolveram-se a partir de um modelo semelhante e depois foram se amoldando às peculiaridades locais. Atualmente todos preservam sua rica história em centros de memória judiciária, infelizmente pouco conhecidos e visitados pelos estudantes de Direito.
[1] O Poder Judiciário e a Emancipação Política do Paraná: Memória e Atualidade. Curitiba: Artes e Textos, 2003, pgs. 121-124.
[2] Memória dos 135 anos: do Tribunal da Relação de Belém ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Belém: Marques Editora, 2008, pgs. 63-64
[3] As sedes do Tribunal. Porto Alegre: Arte Impressa Gráfica e Editora, p. s/nº
[4] Disponível em: http://www2.al.rs.gov.br/biblioteca/LinkClick.aspx?fileticket=zX42l-GZMxY%3d&tabid=3107. Acesso em 6/7/2020.
[5] Presença do Tribunal de Justiça na história de Goiás. Goiânia, TJGO, 2010, p. 91.
[6] Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/leis/constituicoes/constituicoes-anteriores/constituicao-estadual-1891/. Acesso em 6/7/2020.
[7] Tribunal de Justiça de São Paulo. Memória e Atualidade – 1874-2007. São Paulo: Imprensa Oficial, 200, p. 31.
[8] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/216302/450-anos-do-rio-de-janeiro-relembre-a-historia-do-judiciario-fluminense. Acesso em 6/7/2020.
[9] Disponível em: http://www.tjma.jus.br/tj/visualiza/sessao/41/publicacao/9008. Acesso em 6/7/2020.
[10] Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/memoria2/140_anosTJMG.html#:~:text=Com%20o%20advento%20da%20primeira,do%20Estado%20de%20Minas%20Gerais.&text=Em%201945%2C%20sua%20nomenclatura%20foi,chamar%2Dse%20Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a. Acesso em 6/7/2020.
*Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 23/11/2021
Edição: Ana Alves Alencar
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