Falta tudo, só não falta lei.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Para muitos moradores dos nossos centros urbanos, saneamento se resume à conta mensal de água e taxa de lixo no IPTU.
No entanto, basta ir até a periferia de qualquer um desses centros urbanos, para entender as graves consequências da falta de saneamento básico nessas regiões e, para muito além, na maior parte do nosso território.
Passados dois mandatos presidenciais, três presidentes, e vários governos estaduais, virando a década desde a edição da Lei de Política Nacional de Saneamento (Lei Federal 11.445/2007) e a edição do Decreto regulamentador da PNSB (Decreto Federal 7.217/2010), 42,9 % das residências brasileiras ainda não possuem rede coletora de esgotos.
Editado o marco legal para o setor (estabelecendo regras mais claras quanto à titularidade e forma do serviço), esperava-se engajamento maior dos governos e do setor privado na construção de redes e sistemas de esgotamento sanitário, abastecimento de água e destinação de resíduos.
Saneamento é um serviço essencial e, também, ramo negocial importante para a economia.
A inércia na implementação de uma politica tão básica, até agora observada, indica que não possuímos capacitação técnica, jurídica e econômica para implementar o marco legal. Também não exercitamos vontade política e não investimos tempo e dinheiro suficiente para por de pé um setor econômico que poderá transformar a vida de milhões de brasileiros.
Triste realidade
Essa realidade foi constatada em estudo, divulgado em 19 de março de 2014 pelo Instituto Trata Brasil e pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), em São Paulo, denominado ‘Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento Brasileiro’.
O estudo demonstra o óbvio – que o avanço no saneamento básico melhora a saúde, evita doenças, mortes, e também amplia oportunidades econômicas, aumenta a produtividade e soma riquezas país afora.
Coordenado pelo professor Fernando Garcia, da consultoria econômica Ex Ante, o trabalho faz um interessante comparativo internacional, para demonstrar que existe muita coisa a se fazer nessa área, praticamente abandonada pelo Poder Público e ignorada pelo mercado.
Chama atenção a conclusão do estudo: se todos os brasileiros tivessem acesso ao sistema de saneamento básico, o fato, por si só, faria a renda per capta do Brasil aumentar em 6%.
A realidade brasileira é muito triste. O Brasil é o 112º colocado entre 200 países integrantes do ranking de saneamento (água tratada e esgoto).
Na Copa do Mundo e nas Olimpíadas do Saneamento Básico, o Brasil sequer obteve índice de classificação… Não por falta de leis, mas por ausência de implementação, competência e preparo profissional de seus agentes…
O estudo nos fornece dados bastante interessantes. Observadas de forma sistemática, as informações revelam mais que o pretendido pelas organizações.
O quadro do atendimento da estrutura de saneamento é de fato muito precário:
– A distribuição de água nas áreas rurais e urbanas atinge 82,4% da população;
– 48,1% da população brasileira possui esgoto coletado;
– Do esgoto coletado, apenas 37,5% recebe algum tipo de tratamento;
– As perdas na rede de distribuição de água alcançam 38,8% do total destinado a distribuição;
– Sete milhões de brasileiros ainda não têm acesso a banheiro;
– Em 2011, 396.048 brasileiros foram internados por diarreia; destes, 138.447 crianças menores de 5 anos (35% do total) – como referência, importante anotar que 88% das mortes por diarreia no mundo, são causadas por saneamento inadequado;
– As 81 maiores cidades brasileiras, com mais de 300 mil habitantes, despejam diariamente 5,9 bilhões de litros de esgoto sem qualquer tratamento, contaminando solos, rios, mananciais e praias, com impactos diretos na saúde da população.
A contrapartida governamental é incipiente, e revela uma inércia gerencial de grandes proporções:
– O monitoramento da execução de 138 grandes projetos de saneamento em municípios acima de 500 mil habitantes (112 obras do PAC 1 e 26 obras do PAC 2), revelou que apenas 14% das obras foram concluídas até Dezembro de 2012;
– 90 das 138 obras monitoradas encontram-se paralisadas, atrasadas ou não iniciadas. Ou seja, 65% das obras não estão cumprindo os cronogramas;
– No ritmo em que ocorrem os investimentos, apenas em 2122 os brasileiros teriam acesso total ao serviço de saneamento básico.
Perda de produtividade
Os impactos econômicos são relevantes, a começar pela perda de produtividade na população:
– Por ano, 217 mil trabalhadores precisam se afastar de suas atividades devido a problemas gastrointestinais ligados a falta de saneamento. A cada afastamento perde-se 17 horas de trabalho;
– A probabilidade de uma pessoa com acesso a rede de esgoto faltar as suas atividades normais por diarreia é 19,2% menor que uma pessoa que não tem acesso à rede;
– A diferença de aproveitamento escolar entre crianças que têm e não têm acesso ao saneamento básico é de 18%;
– 11% das faltas do trabalhador estão relacionadas a problemas causados por falta de saneamento.
Os dados mostram o que deixamos de ganhar por não fazermos nosso dever de casa:
– Cada R$ 1 (um real) investido em saneamento gera economia de R$ 4 (quatro reais) na área de saúde;
– Ao ter acesso à rede de esgoto, um trabalhador brasileiro aumenta sua produtividade em 13,3%. Esse incremento resulta no aumento de 3,8% no ganho salarial com a diminuição de faltas;
– A universalização do acesso à rede de esgoto proporciona valorização média de 18% no valor dos imóveis;
– Saneamento resulta na melhora significativa do rendimento escolar em crianças que apresentam atraso por doenças relacionadas à falta desse serviço básico em suas moradias e comunidades;
– Saneamento representa incremento na indústria do turismo, mais postos de trabalho e significativa valorização ambiental;
– Um esforço de redução de 10% nas perdas com vazamentos, roubos, ligações clandestinas, falta de medição ou medições incorretas no consumo de água, no Brasil, agregaria R$ 1,3 bilhão à receita das operadoras – o equivalente a 42% do investimento realizado no sistema de abastecimento de água, em todo o País.
Falta de cidadania
A falta de implementação legal é reflexo do baixo exercício da cidadania, seja pela falta de resposta governamental às reivindicações, seja pelo desconhecimento da população de como a estrutura de Estado funciona em relação ao saneamento:
– 75% das pessoas entrevistadas afirmaram que, apesar dos problemas, não cobram melhorias nos serviços;
– 59% dos cidadãos entrevistados, afirmaram que reclamações são encaminhadas à Prefeitura ou empresa de saneamento responsável, porém nenhuma medida de melhoria é adotada;
– A maioria dos entrevistados (68%) sabe que o Prefeito é o principal responsável pelos serviços da área de saneamento básico;
– No que se refere à fiscalização, a maior parte dos entrevistados (55%) diz caber à Prefeitura cuidar do saneamento – 18% entendem cumprir a tarefa ao governo do Estado;
– A Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento, prevista em lei, foi citada por apenas 1% dos entrevistados;
– 13% das pessoas entrevistadas não sabem absolutamente nada sobre a quem recorrer nesse tema.
Os índices revelam falta de educação, de civismo, de conscientização e organização social.
A desgraça da burocracia
Dinheiro, nesse período, não faltou.
Havia verba no governo federal, destinada para o saneamento básico. Ainda há linhas de crédito disponíveis para a consecução de projetos no setor.
A legislação de Parcerias Público-Privadas brasileira, em que pese necessitar de ajustes, já fornece boa base para unir iniciativa privada e entes federados, no esforço de instituir serviço de saneamento básico digno desse nome, em vários municípios brasileiros.
Planos diretores de saneamento já pululam país afora e consórcios também começaram a ser esboçados.
No entanto, a corrupção, o compadrio, o oportunismo mal engendrado, contaminaram e ainda contaminam qualquer iniciativa séria.
Não bastasse a desgraça da corrupção e da incompetência empresarial, a contrapartida da burocracia estatal revela tragédia ainda maior.
O desprezo por soluções técnicas e jurídicas que não atendam a preceitos ideológicos da burocracia incrustada nos órgãos governamentais é causa determinante para o desestímulo aos investimentos.
A praga da judicialização
A judicialização, outra praga da jusburocracia nacional, por outro lado, é intensa.
Com efeito, é notória a ignorância institucionalizada nos quadros do Ministério Público brasileiro quanto à função social e econômica da Lei de Saneamento, a absoluta falta de respeito aos mecanismos de investimento e planejamento empresarial, o desconhecimento completo do que seja um project finance e a ausência de compreensão dos mecanismos econômicos que sustentam o setor de saneamento, algo essencial para implementar qualquer cronograma de atendimento aos padrões de universalização pretendidos pela norma jurídica.
A judicialização sistemática dos conflitos regulatórios e de licenciamento,revela exatamente isso.
Não é apenas o Ministério Público. Toda a jusburocracia brasileira possui um pobre entendimento estratégico, carregado de preconceitos, marcadamente medíocre, do papel do setor privado na implantação dos serviços de infraestrutura.
Da mesma forma, há uma obsessão pela litigiosidade. Algo que antepõe prefeitos, procuradores, promotores, juízes, administradores públicos e planejadores estatais, pelos mais variados motivos. A doença do parecerismo, que de nada serve a não ser perenizar impasses no ambiente regulatório, faz a festa de assessores, licenciadores e padarias jurídicas… uma simbiose sinistra que demanda efetivo saneamento no meio. Investimentos em programas de saneamento, não é fato raro, costumam terminar em cassação de mandato (alguns até por motivos justos)…
Esses fatores estão a merecer um profundo e inovador estudo, que se somasse aos vários já apresentados pelos organismos privados, como o mencionado nesse artigo, no sentido de causar um impacto para além do constrangimento habitual entre instituições.
Conclusão
Ignorância, incompetência, preconceito ideológico, oportunismo e corrupção contaminam o saneamento público no Brasil.
O saneamento básico nacional, portanto, precisa ser saneado estruturalmente, para que só então se processe uma correta implementação do marco legal – que, literalmente, ainda não saiu do papel.
Enquanto isso, a falta de saneamento continua a atingir toda a população brasileira, sua saúde, seu trabalho, sua renda e sua educação.
Atinge, portanto, a saúde e desenvolvimento econômico do país.
O saneamento básico no Brasil precisa se tornar uma realidade limpa e saudável para todos os brasileiros, e não o esgoto a céu aberto de fatos lamentáveis, que hoje presenciamos.
Colaborou Ana Alves Alencar
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado, sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD e UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Ex-Presidente e Membro Emérito da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe da mídia Portal Ambiente Legal, Diretor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor responsável pelo Blog The Eagle View.
Acredito que é preciso promover mais do investimento na urbanização não planejada, os governos de outrora nada fizeram e, os atuais, continuam inertes como nos mostrou Dr. Pinheiro Neto.
A educação ambiental e, a urbanização executada de maneira adequada pode mitigar os problemas que hoje assolam o nosso país.
A manutenção da EA – Educação Ambiental, nos adultos e oficialização da disciplina EA ou Gestão Ambiental nos ensinos básico seria uma maneira de complementar esse investimento de maneira séria em nosso país. É um modelo que já aconteça na França ha muito tempo. Poderia servir como exemplo para nosso país.
Acho que não da pra falar em melhoria urbana, se pudermos nutrir toda sociedade com os conceitos mais básicos dos conhecimentos Ambientais, por tanto nosso ecossistema.
Vale aqui nos utilizarmos um exemplo claro do escreveu Eugene Odum em seu livro – Ecologia.
“Importante lições econômicas e políticas podem ser aprendidas com o exemplo de Copperhill. Quando uma única indústria esgota toda sua capacidade para a manutenção da vida de uma grande área e, neste caso, destrói uma parte dela, nenhum desenvolvimento econômico posterior nesta área é possível. Nenhuma outra indústria ou negócio diretamente ligado à indústria local virá estabelecer-se, porque não existe apoio ambiental possível para mais nada…”.
São situações de nosso cotidiano que nos mostram claramente um capitalismo implacável que, posterior ao desgaste desse local ou qualquer outro irá inserir ali um possível condomínio ou shopping como ocorre no estado de São Paulo.
A minha intenção não é a de conflitar com outras opiniões é poder trazer uma discussão séria no campo ecológico e educacional. Assim as futuras gerações terão uma vida melhor.
Especialista em Gestão Ambiental do Espaço Urbano e Geógrafo
Prezado Sr. Antônio Fernando li este artigo e tenho a dizer que há mais de 30 anos militando na área, infelizmente tenho a relatar que muito pouco mudou, pelo menos aqui na periferia de BH e de sua região metropolitana, enquanto isto nossa cidade vem colecionando prêmios internacionais de cidade modelo de sustentabilidade. Sim algumas coisas avançaram e há muito conhecimento. Mas os córregos da extensa rede de drenagem natural, na sua maioria, continuam extremamente contaminados por todo tipo de efluentes, resíduos, entulhos e muito mais. O acesso de crianças e insalubridade é uma triste constatação. E sabemos de alguma forma da existência de verbas e tecnologia. Até quando nossas administrações continuarão negligentes quanto a estas questões tão fundamentais para nosso processo civilizatório. Um grande abraço e espero que outras pessoas possam multiplicar esta discussão tão necessária.