Por Edna Uip
Depois de não parar de andar, ao sol e a chuva, vento cortante e neve, com pés descalços e fragmentos de roupas, pediu um local para descansar. Avistou a casa que lhe disseram sua. Reconheceu-a como uma lembrança distante, antiga. Os contornos mal lhe eram familiares. A tinta azul da porta estava se descolando. Partira há tempo demais. Algo lhe trazia contorno de flores e cercas vazadas, claras. Nada mais estava ali. Diminuiu a velocidade. Queria desistir. A caminhada exaurira-o, roubara-lhe os desejos. Chegar era assustador, mas o cansaço o impediu de não continuar.
Ultrapassou a soleira e viu-se em um ambiente escuro e inóspito, chão de terra, desértico, sem os móveis que pensava estarem ali. Sentou-se desanimado e assim permaneceu por tempo suficiente para recobrar as forçar e pôr-se a arrumar o que lhe impuseram ser seu.
Perguntou onde estava a cerca. Caíra, fora roubada. Indagou o tamanho do terreno. Grande, muito grande.
Foi o que fez de primeiro. Refez a cerca branca das suas memórias até perder de vista seus contornos. Desta vez reforçou-a com pedras. Não lhe a roubariam. As flores nasceram por si, em homenagem à vontade que sentiu de apoderar-se do seu.
Passou novamente pela soleira. Novo desânimo. Sentou-se e dormiu. Mais tempo do que na primeira vez até que recobrou as forças. Vieram desta redobradas.
Muniu-se de tijolos bastante sólidos e pesados e passou sem demora a construir o interior da casa. Limpeza, ar, alguma cor. Branco em algumas paredes e na porta de entrada. Nunca mais o azul. Alegrou-se. A cada nova organização mais próximo do seu direito à permanência.
Penetrava em cada cômodo e com ele entrava luz.
Em uma das vezes que se dobrou ao peso dos tijolos percebeu-se não mais só. Olhou por baixo das pálpebras e deu com seus pais, umas caras ameaçadoras, uns corpos tensos e enfurecidos.
– Quem disse que você podia arrumar? Quem disse que tinha o direito de mudar o que fizemos? Caminhe, até lhe faltarem pernas e olhos.
Atravessou-os com o olhar e fez com que sumissem.
Só parou quando pode descansar.
Edna Uip, advogada formada pela USP e empresária, está habituada a ver o mundo pelos olhos da razão, sem no entanto, deixar de cultivar atenta observação do comportamento humano e suas emoções. Autora do romance Espelhos Quebrados (Sá Editora, 2010), é escritora, ensaísta e poeta. Colaboradora do Portal Ambiente Legal, publica regularmente na Seção Ambiente Livre.