No norte da Índia, uma mistura de sete fungos diferentes pode ajudar a capital com a pior poluição atmosférica do mundo.
O início da primavera traz alívio para Delhi. O ar é fresco, e com o clima mais ameno vêm chuvas leves que tornam a vegetação mais exuberante.
Por volta de abril, os ventos de sudoeste varrem a região, e o manto de poluição que cobre a cidade nos meses de outono e inverno começa a se dispersar. Mas ele nunca vai embora totalmente.
Nos últimos dez anos, Shaheen Khokhar testemunhou este ciclo anual como residente de Gurugram, a sudoeste de Delhi, no Estado de Haryana, no norte da Índia. Por volta de outubro, quando ela dirige para a cidade, os céus cinzentos com cara de nublados surgem sem aviso prévio.
“Em um minuto, há sol e, no próximo, você está envolvido nessa névoa escura e esfumaçada”, diz ela. “Todos os dias, vemos um lembrete visual profundamente perturbador da poluição com a qual somos forçados a conviver.”
Os efeitos dessa poluição vão desde irritação da pele e dos olhos até doenças neurológicas, cardiovasculares e respiratórias graves, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, bronquite, perda de capacidade pulmonar, enfisema, câncer e aumento das taxas de mortalidade. Mundialmente, a poluição do ar mata cerca de 4,2 milhões de pessoas a cada ano.
Em outubro e novembro, crianças em idade escolar em todo o norte da Índia, especialmente na capital, Delhi, e nas proximidades de Gurugram, enfrentam interrupções frequentes das aulas. À medida que a poluição piora, as escolas fecham por cerca de duas semanas a cada ano. “Nossos filhos usavam máscaras na escola muito antes da crise da covid”, diz Khokhar.
Vinte e uma das 30 cidades do mundo com os piores níveis de poluição do ar estão na Índia, de acordo com dados compilados no Relatório Mundial de Qualidade do Ar de 2021. Seis cidades indianas estão no top 10.
Delhi tem a maior exposição ao ar tóxico do país. As pessoas na Índia estiveram expostas ao quinto maior registro anual de partículas finas (PM2,5), uma forma particularmente prejudicial de poluição do ar. A média anual de poluição PM2,5 em Delhi foi a pior de qualquer capital do mundo por ampla margem.
A poluição industrial e as emissões veiculares são alguns dos principais fatores responsáveis pelo ar tóxico durante todo o ano, de acordo com um relatório da consultoria Observer Research Foundation. Mas nos meses de outubro e novembro, a poluição fica ainda mais intensa por causa dos incêndios em terras agrícolas. Em 2019, satélites da Nasa detectaram esses incêndios do espaço.
Saber exatamente quanto do pico anual de poluição do ar se deve à queima de plantações é difícil — os números oficiais apontam para cerca de 10%, enquanto outras pesquisas sugerem que pode ser mais.
Em Delhi, acredita-se que a queima de plantações contribua com até 42% de todas as partículas no ar. No Estado de Haryana, PM2,5 e PM10 observados (uma forma maior, mas também prejudicial de partículas) aumentam de 2 a 3 vezes acima dos limites do Padrão Nacional de Qualidade do Ar Ambiente durante a estação de queimadas do outono.
Pessoas de todas as faixas etárias sofrem com um aumento de doenças respiratórias durante esta época do ano.
Assista ao vídeo da matéria do Jornal Hoje/Globo: https://globoplay.globo.com/v/10048889/
Em 2015, a queima de plantações virou crime em Delhi e nos Estados de Rajasthan, Punjab, Uttar Pradesh e Haryana — mas é difícil monitorar esse tipo de crime. Em janeiro de 2019, o governo indiano lançou o Programa Nacional de Ar Limpo, um plano de cinco anos com o objetivo de conter o agravamento dos níveis de poluição em todo o país e melhorar o monitoramento e a conscientização sobre o assunto.
Hoje, o país pode estar perto de uma mudança grande. A resposta envolve abordar práticas agrícolas antigas que pioram a poluição, diz Ashok Kumar Singh, diretor do Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola.
Não há fogo sem fumaça
Em uma tarde agradável em setembro de 2021, Dhruv Sawhney, engenheiro e COO da nutri.farm, uma plataforma digital para soluções agrícolas sustentáveis, dava uma palestra a um público de 200 homens e mulheres — todos agricultores em uma vila perto de Karnal, em Haryana.
No pátio da casa de um agricultor, cheio de cadeiras frágeis e banquinhos, e cercado por arrozais, Sawhney explicava como a mudança para um novo método de limpeza de resíduos agrícolas poderia ajudar o agricultor a ganhar mais e, no longo prazo, melhorar a qualidade do solo.
Como de costume nessas reuniões, Sawhney foi recebido com alguma descrença. Um fazendeiro em especial não parecia convencido. “Você tem certeza que isso vai funcionar?” ele perguntou com ceticismo. “Prefiro incendiar meus campos e pronto.”
Sawhney fez uma pausa no meio do discurso. “Se não funcionar, eu mesmo vou botar fogo nos seus campos”, brincou.
A solução que ele recomenda aos agricultores é um novo spray microbiano orgânico desenvolvido pelo Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola em Delhi. A plataforma de Sawhney, nutri.farm, foi uma das 12 empresas indianas para as quais o instituto licenciou o uso dessa tecnologia em agosto de 2021.
Chamado de Pusa Decomposer, o spray é composto por sete espécies diferentes de fungos naturalmente presentes no solo, diz Singh. Depois de muitos testes de laboratório, descobriu-se que essas espécies de fungos eram extremamente eficazes na decomposição dos resíduos para obter energia e nutrientes. Este spray microbiano decompõe rapidamente os resíduos dos campos após a colheita do arrozal. Dentro de três semanas, os resíduos se integraram ao solo, atuando como fertilizante para a próxima estação de crescimento.
Mas os testes em campo por si só não são suficientes para fornecer o produto aos agricultores. Entender por que os agricultores botam fogo em seus campos é fundamental para desenvolver uma solução, diz Singh.
“Arroz e trigo são culturas predominantes na Índia. São culturas que precisam de água subterrânea substancial para um bom crescimento”, diz ele. “Há dez anos, o arrozal era cultivado no início de abril, durante os meses quentes de verão e colhido em setembro.”
No entanto, devido ao esgotamento das águas subterrâneas, o governo decidiu mudar a época do plantio para meados de junho (quando as águas subterrâneas são reabastecidas pelas monções da Índia). A colheita acontence então na primeira semana de novembro.
Novembro também é a época ideal para os agricultores cultivarem trigo. “Quando você atrasa o plantio do trigo até 20 de novembro, o rendimento diminui drasticamente”, diz Singh. “Então, agora, o agricultor tem uma janela muito estreita para limpar os campos de talos de arroz [resíduos da colheita do arroz] e preparar o campo para semear o trigo. A queima desse resíduo permite que eles limpem seus campos rapidamente.”
A prática prosperou a partir da década de 1980, principalmente depois que os agricultores indianos começaram a usar técnicas de colheita mecanizada que deixaram muitos talos de arroz presos no solo. Antes disso, o trabalho tradicional de colheita de arroz era feito à mão.
Embora seja demorado, esse trabalho não deixou os campos cheios de caules, diz Singh. No entanto, à medida que os agricultores aumentaram suas operações, 23 milhões de toneladas de resíduos de arroz são queimados todos os anos no norte da Índia. Se alguém colocasse todos esses talos em fardos de 20 kg e os empilhasse, a torre atingiria a Lua.
De lixo à riqueza
O spray de fungos não foi a primeira solução apresentada para lidar com o problema. Em 2014, os agricultores tiveram a opção de semear uma variedade de arroz híbrido tolerante à seca que poderia ser colhido em 120 dias — o que lhes daria um mês para arar seus campos manualmente e se livrar do talo do arroz em vez de queimar o resíduo. No entanto, as variedades híbridas de arroz não eram tão populares entre os agricultores, que não estavam convencidos de sua viabilidade econômica.
Em 2006, a The Happy Seeder — uma máquina projetada para semear — também conseguia remover os resíduos, triturá-los e espalhá-los pelo campo. E embora o governo ofereça um subsídio de 50% para pequenos agricultores, essa ainda é uma proposta cara, especialmente se você estiver cultivando apenas pequenas parcelas de terra.
O Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola observou que a máquina não distribuía as sementes de maneira uniforme e causava problemas de germinação. Para muitos agricultores, esse investimento era inviável.
O spray de fungos também teve um começo difícil. Inicialmente, os agricultores eram obrigados a fermentar e preparar a solução microbiana. Cada agricultor recebia cinco cápsulas com os fungos. Eles foram orientados a adicionar cinco litros de água em cada cápsula, 150g de açúcar mascavo (que age como fonte de alimento para os fungos) e 15g de grão de bico (fonte de proteína).
Cada cápsula é fermentada por três dias, e 25 litros desta solução são pulverizados manualmente nos campos durante duas semanas. Cada cápsula custa ao agricultor algo entre 60-70 rúpias (R$ 3,60 a R$ 4,20) e pode ser usada em um hectare.
No entanto, a imprensa local noticiou que os agricultores não foram capazes de executar a solução de forma eficaz e as autoridades acreditam que haveria erros na preparação das cápsulas. O decompositor Pusa está agora disponível em pó; 300g da fórmula são suficientes para cerca de meio hectare de terra.
A adaptação do processo garantiu que as máquinas, disponibilizadas gratuitamente aos agricultores, pulverizassem os campos de forma mais uniforme. O resíduo decomposto enriquece o solo, reduzindo a dependência de fertilizantes químicos em até 25%, diz Singh.
“Quando os agricultores queimam os resíduos da colheita, a temperatura da camada superior do solo sobe para 42°C e acaba matando todos os micróbios benéficos do solo. Mas a pulverização microbiana enriquece o solo”, diz.
A solução aborda não apenas a poluição do ar, mas a má saúde do solo que pode comprometer a qualidade de alimentos e água, de acordo com um relatório liderado por Natalia Rodríguez Eugenio, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). A má qualidade do solo também tem a capacidade de impactar a biodiversidade, diz Rattan Lal, professor de ciência do solo na Ohio State University, nos EUA.
“O solo na Índia está cada vez mais sem seu estoque de matéria orgânica”, diz Lal, que não tem ligação com o projeto. “Nos Estados do noroeste, como Punjab, Haryana, Rajasthan e Uttar Pradesh, o teor de carbono orgânico do solo na camada superficial de 30 cm do solo é inferior a 0,25% e muitas vezes chega a 0,1%”. A faixa ideal para o carbono orgânico do solo deve ser de pelo menos 1% a 1,5%. Ele vê o spray de fungos como uma maneira promissora de resolver o problema.
“Essa forma de aproveitamento dos resíduos agrícolas não trará efeitos adversos à saúde do solo”, afirma. “No entanto, é importante ficar de olho no custo e garantir que o agricultor seja compensado por adaptar um processo que protege o planeta.”
Antigamente, uma certa quantidade de resíduos da colheita era usada como ração para o gado antes que os agricultores queimassem o resto. Usar o spray Pusa pode significar que pode haver menos disponibilidade para alimentar a 553 milhões de cabeças de gado da Índia, diz Lal.
“Garantir que isso não aconteça e ficar de olho no efeito dominó também é importante. Uma gestão criteriosa dos resíduos da colheita é fundamental para fortalecer o conceito de ‘uma só saúde’ — a saúde do solo, plantas, animais, pessoas e ecossistemas — é tudo interligado”, diz ele.
Krishna Kumar, de 48 anos, planta há 30 anos no vilarejo de Bhanan Khera, no distrito de Hisar, em Haryana, onde possui cinco acres de terra e arrenda outros 15. “Fiquei intrigado com o spray decompositor, desde então um parente recomendou que eu experimentasse”, diz ele.
Ele o usou o spray no ano passado e os resíduos da colheita em suas terras se decompuseram completamente. O composto enriqueceu o solo e o ajudou a economizar cerca de mil a 1,5 mil rúpias (R$ 60 a R$ 90) por acre em custos de fertilizantes. Ele acredita que a saúde a longo prazo do solo parece promissora.
“Queimar nossos campos e ter que lidar com toda aquela fumaça também não é fácil para o agricultor. Estou feliz por haver outra opção viável agora”, diz ele.
Empresas como a Nutri.farm entraram em cena para tornar o processo de implantação da pulverização microbiana muito mais fácil para os agricultores, oferecendo um aplicativo onde a pulverização pode ser reservada gratuitamente, além de oferecer outros serviços agrícolas pagos, como aluguel de equipamentos. Sawhney espera eventualmente que o aplicativo possa se tornar uma plataforma para a venda de créditos de carbono, devido às emissões economizadas pelos agricultores na decomposição de fungos.
Dos 3 milhões de hectares em Punjab sob arrozais, cerca de metade foram queimados na última safra no norte da Índia, diz Singh. Até agora, o decompositor Pusa foi empregado em 500 mil hectares nos quatro Estados onde ocorre a maioria das queimadas: Punjab, Haryana, Delhi e Uttar Pradesh.
Depois de ser usado neste projeto piloto em uma única temporada (a próxima fase abrangerá uma área maior), ainda é muito cedo para quantificar exatamente o impacto do spray na redução da poluição geral.
A queima de resíduos continua sendo apenas uma parte do desafio da poluição do ar na Índia, ao lado da indústria e do transporte. Mas se a pulverização for adotada em maior escala, com mais agricultores e empresas assinando, a diferença pode ser bastante significativa, diz Singh. Especialmente quando a poluição atinge o pico em outubro e novembro.
Como a pausa da primavera e a mudança dos ventos ajudam a diluir a poluição atmosférica na região de Delhi, moradores como Shaheen Khokhar só podem esperar que intervenções como esse spray microbiano possam tornar o início da próxima temporada de poluição um pouco mais administrável do que a passada.
Fonte: G1 via Ambiente Brasil
Publicação Ambiente Legal, 17/04/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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