Especialistas alertam para avanços tímidos, que põem o país abaixo da América Latina e do Caribe em termos de destinação final adequada de resíduos
Por Emanuel Alencar*
Há dez anos o Brasil festejava a aprovação de uma nova lei que prometia ser um divisor de águas na gestão dos resíduos. Mas, a despeito de alguns avanços, o cenário da destinação final de lixo no país segue bastante complicado. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe), o Brasil ainda conta com 2.970 lixões a céu aberto em funcionamento, com 3.001 municípios que fazem uso de unidades de destinação inadequadas (em lixões ou em aterros controlados), o que representa mais da metade das cidades brasileiras. Cerca de 730 aterros sanitários (estes sim, tecnicamente adequados), recebem 59% do total de resíduos gerados diariamente nas cidades do país. A média dos países da América Latina e do Caribe é de 69%, aponta o “World Bank Group”. Segundo a Abrelpe, só 4% do total de resíduos sólidos urbanos no país são reciclados.
Especialistas no assunto, ouvidos pelo #Colabora, concordam que os avanços poderiam ter sido mais significativos, mas destacam que empresas estão, enfim, assumindo a rédea para garantir a chamada logística reversa dos produtos. É quando um material usado, depois de descartado, volta ao início da cadeia produtiva como matéria-prima, sendo passível de reciclagem ou reutilização. A logística reversa é uma obrigação imposta pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305, de 2 de agosto de 2010). A lei diz ainda que só podem ir para aterros sanitários os rejeitos, ou seja, tudo o que não for possível ser beneficiado e requalificado. Veda os lixões a céu aberto (o prazo inicial era 2014). Tudo o que não ocorre hoje, porém: toneladas de plásticos, metais, papéis e vidros seguem inundando lixões e aterros. Um ciclo que robustece a procura por matéria-prima virgem – um mal negócio para a sustentabilidade do planeta.
Superintendente da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte critica a estagnação dos percentuais de reciclagem do país. No caso do vidro, 60% do material consumido em capitais do Sudeste, por exemplo, acabam indo para aterros. As centrais de triagem de São Paulo, por exemplo, não separam o vidro de outros recicláveis. Uma destinação nobre – de origem “limpa”, o vidro é um material 100% reciclável – acaba não acontecendo.
“Os índices [de reciclagem] estão estagnados, pois o modelo vigente ainda prioriza os materiais que têm valor econômico. Os modelos que funcionam no mundo têm o Estado exigindo do setor privado, que responde de forma consciente e proativa. Aqui fica um eterno jogo de empurra-empurra. As embalagens consumidas no Brasil têm 40% de vidro reciclável. E esse percentual infelizmente se manteve estável de 2010 para 2020. É lindo falar do social, do econômico e do ambiental. Mas o fato é: a viabilidade financeira não está resolvida”, comenta Lucien. “Se não temos a entrega pelo cidadão [do vidro nos pós consumo], se não há triagem da prefeitura ou do consórcio, se não existe a volta do vidro, na chamada logística reversa, como vamos superar esse cenário?”
ANA assume atribuição de regular saneamento
Para o advogado Antônio Fernando Pinheiro Pedro, um dos consultores que trabalharam na formatação da lei, durante a última década a legislação dos resíduos ficou capenga por ausência de um ente regulador federal. Somente este ano, com o novo marco legal do saneamento (sancionado por Bolsonaro em 15 de julho), a Agência Nacional de Águas (ANA) assumiu a atribuição, transformando-se em Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANAS).
“Ocorreu que a Política Nacional de Resíduos Sólidos ficou todo esse tempo solta, sem regulação. Isso só aconteceu agora, com a ANAS, um ‘emendão’ na estrutura existente. É um pouco da história da síndrome de Janus, o deus que tem dois rostos no mesmo corpo. A partir de agora temos um início. Por enquanto só quem ganhou foi quem fez consultoria para municípios”, destaca.
Fabrício Soler, advogado especializado em Direito dos Resíduos, avalia que houve sim, outros ganhos.
“Entendo o balanço [dos dez anos] como positivo. Tivemos produtos que não eram regulados, e passaram a ter acordos setoriais, termos de compromisso e dois decretos (um para a logística reversa de eletroeletrônicos e outro para medicamentos). O desafio é implementar gradualmente a logística reversa. O processo é crescente e deveremos ter em breve móveis e automóveis inseridos nessa cadeia”, pontua.
A análise mais otimista segue a visão de Solange Cunha, professora visitante de Direito Ambiental na Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ela enxerga muitos problemas na execução política da lei, mas destaca avanços.
“A lei foi discutida mais de 20 anos no Congresso. É tecnicamente bem feita, tem diretrizes, planos regionais, microrregionais. Lixões foram determinados para acabar em 2014. Não só não acabou como observamos vários problemas, como a importação de resíduos perigosos, processo contra o qual não há inspeção rotineira. Por outro lado, muitas empresas estão assinando acordos setoriais, tivemos recentemente o acordo dos produtos eletroeletrônicos. Vejo mais mobilização e comprometimento”.
Dívida das prefeituras chega a R$ 18 bilhões
A morosidade nos avanços decorre também de um crônico impasse econômico. Prefeituras brasileiras estão devendo nada menos do que R$ 18 bilhões para companhias de limpeza pública. Empresas que operam aterros sanitários relatam enormes dificuldades em manterem o serviço de pé, dado o volume crescente das dívidas. Prefeituras, por sua vez, relatam problemas de fluxo de caixa para bancaram um serviço essencial à coletividade.
O fato é que cada vez mais resíduos têm chegado nesses centros de tratamento. Em 2010, o Brasil gerava 173.583 toneladas/dia de resíduos. Em 2018 (último dado disponível pela Abrelpe), a geração diária saltou para 216.629 toneladas (um aumento de 24,7%). Mas nesse intervalo de oito anos, a população brasileira cresceu 6,98% (de 194,8 milhões para 208,4 milhões). Um descompasso que mostra que a redução do consumo e a reutilização (medidas anteriores à reciclagem) ainda são letra morta.
*Emanuel Alencar – Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Atualmente, é editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa o mestrando em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 18/08/2020
Edição: Ana A. Alencar