“Nasci para consagrar-me às letras, artes e ciências, e, a ocupar posição política preferia sinceramente a de senador à de imperador do Brasil. Se ao menos meu pai ou tivesse um irmão mais velho que imperasse ainda estaria eu há 58 anos com assento no Senado lutando por meus ideais da abolição, ecologia e teria viajado muito mais pelo mundo para conversar com meus amigos Friedrich Nietzsche, Charles Darwin, Graham Bell, Thomas Edison e tantos outros queridos para dividir minhas ideias e resoluções para os problemas de minha terra mãe.“
O lamento acima leva a assinatura de D. Pedro II e faz parte de um diário que escreveu desde 1840 até sua morte em 1891.
Pedro II nutria experiências em viagens, mas em grande maioria pelo território nacional, pois achava mais ético ver de perto os problemas de seu povo. Até hoje é o governante que mais vezes visitou o norte e nordeste do país, principalmente para tentar solucionar o problema da seca no interior da caatinga. Sempre com sua visão científica de um grande conhecedor dos minerais e da botânica, tentava ajudar nas conclusões dos técnicos contratados. Em 1877 criou uma comissão para propor soluções para a seca na região.
Apenas a partir de 1871 , quando Pedro conseguiu a tão sonhada Lei do Ventre Livre (assinada por sua filha a Princesa Isabel) , depois de mais de 38 anos de tentativas frustradas, pois suas leis muitas vezes não eram aceitas pelo parlamento formado por conservadores escravagistas, sentiu um alívio para realizar um grande sonho, o de viajar em um navio a vapor cruzando o Atlântico rumo ao velho mundo, tão familiar em suas leituras e estudos.
Pedro sempre avesso às pompas monárquicas e muito mais propenso à vida intelectual do que de um chefe de Estado, ficava extremamente tímido quando era reconhecido e, aos fardos das imposições de tantos protocolos, tentava escapar das honrarias mesmo dentro da Corte.
Para que lhe deixassem em paz e por sua grande ética, sempre bancava suas viagens como um mero viajante, com suas economias, pois não gastava em luxos comuns aos Barões e Condes da época, e até mesmo com empréstimos a bancos, pois não aceitava retirar dinheiro do governo para tais atividades. Fato impensável atualmente, onde os governantes e políticos em geral fazem questão de tirar dinheiro do povo para até as mais “básicas” extravagâncias. Sua casaca desgastada e seus empréstimos para sustentar sua família e suas viagens, geravam comentários da mídia e do próprio povo que achava um absurdo um imperador viver como um homem de classe média.
Em correspondência quase diária com sua filha a Princesa Imperial Dona Isabel, que assumia a regência quando seu pai andava mundo afora, Pedro orgulhou-se de comprar duas vestimentas nos EUA que ficavam prontas no mesmo dia, ressaltando o baixo preço e ignorando o acabamento pouco caprichado. Lembrando que uma vestimenta de um barão na época demorava em média um mês para ficar pronta ao gosto do cliente com os tecidos e acabamentos mais perfeitos e caros possíveis.
Pedro queria camuflar-se como um burguês qualquer, escondendo-se das obrigações da nobreza, mas não abria mão da vaidade intelectual. Do outro lado do Atlântico, praticou 23 idiomas, sendo que 17 dominava totalmente, incluindo o grego, o hebraico, o sânscrito e o tupi-guarani.
Quando visitou o Alto Nilo, no Sudão, ladeado por egiptólogos, escreveu em seu diário, teses de ensaios completos de arqueologia.
Na Europa, correu atrás de seus ídolos. Assistiu às experiências do jovem e até então desconhecido doutor Freud.
Foi o primeiro a financiar as pesquisas de Pasteur, inventor da pasteurização, com agradecimento final a Pedro II em final de sua tese.
Tentou ser recebido por Victor Hugo, mas o escritor e socialista francês era contra a qualquer tipo de monarquia e não o recebeu. Victor Hugo, por convicções ideológicas radicais, não queria contato com monarcas. Porém Pedro não se deu por vencido. Foi à casa do escritor sem ser convidado, na hora do jantar, e o socialista não teve saída se não aceitar a visita. Os dois viraram amigos íntimos e Victor Hugo confessou seu erro e preconceito a vários jornais franceses e ingleses da época. Quando Pedro voltou ao Brasil, o francês mandava cartas semanalmente devido a força da amizade que construíram em apenas três visitas físicas e este laço de carinho perpetuou por toda a vida. A filha de Vitor Hugo esteve presente no cerimonial de despedida e sepultameno de Dom Pedro II.
Pedro viajou mais de 35 mil quilômetros pelo território dos Estados Unidos, sempre contra os ideais do sul do país que era agrário e escravista. Certa vez, uma senhora milionária sulista inconformada com a derrota do Sul na guerra civil americana de 1861-1865, lhe propôs ser imperador daquela região e anexar o sul americano ao império do Brasil. “A isto respondi com dois “Never”!” bem enfáticos! “ escreveu em seu diário.
Não só a proposta deve tê-lo irritado e ofendido diante suas convicções, mas também tinha ojeriza de ser reconhecido como um imperador escravista, pois muitos na época e até mesmo atualmente, não entendem que se tratava de um governo parlamentarista, onde tudo passava pelo Senado e Parlamento, que sempre tinha a última palavra nos inúmeros pedidos de lei que Pedro mandava, principalmente para abolição, soluções de amparar os negros libertos, ecologia e redes ferroviárias por todo território nacional, ligando o sul ao norte do império continental.
Pedro II foi o primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar o Oriente Médio, em 1871 e 1876. A Viagem de Pedro II deflagrou o processo de emigração de árabes para o Brasil, pois ele fez questão de estabelecer grandes relações diplomáticas com diversos países da região, abrindo as portas do Brasil á todos habitantes sem grandes exigências.
Em uma viagem de trem pela Alemanha, Pedro soube que o filósofo odiado por muitos Friedrich Nietzsche, estava em uma cabine próxima. Pedro II apresentou-se como um cidadão comum e conversou durante 5 horas com filósofo, apenas depois confessou ser imperador do Brasil. Quando o radical ouviu a confissão levantou-se, começou a rir e abraçou Pedro e o disse que nunca imaginaria como um homem tão simples, educado e inteligente, poderia ser monarca de um império tão grande e, que a partir daí, tentaria não mais julgar com tanta frieza as pessoas antes de ter uma boa conversa. Nietzsche correspondia-se com Pedro mensalmente, dividindo ideias e assuntos íntimos de sua vida afetiva conturbada, e também manteve este contato e admiração até sua morte.
Sua quarta viagem ao exterior, foi a mais traumática e violenta possível, se tratava da expulsão da Família Imperial devido à proclamação da República por meio de um golpe militar com ações pela madrugada enquanto o povo dormia. Todos familiares foram expulsos com a roupa do corpo, a Imperatriz do Brasil Dona Teresa Cristina, não pode nem levar uma maleta com algumas mudas de roupas para trocar no decorrer da viagem. Seu neto e grande amigo Pedro Augusto que já sofria de esquizofrenia e tinha melhorado bastante graças às visitas do doutor Freud e ajuda espiritual de discípulos de Allan Kardec, teve um novo surto, talvez o pior de todos de sua vida, tentando jogar-se ao mar gritando por socorro e amordaçado por militares a mando de Deodoro. Pombos com mensagens e bilhetes de ajuda em garrafas jogados em meio à saída na baía de Guanabara e até mesmo em alto mar, foram inúteis, mesmo com algumas garrafas que chegaram ao litoral carioca, paulista, cearense e baiano.
O povo acordou no dia seguinte, em choque com tropas militares desfilando e espancando a população que já tinha entendido o que estava acontecendo.
Vários artistas da música, do teatro, jornalistas, escritores, poetas foram exilados para Angola e Amazônia.
Além do começo de uma grande ditadura e o rompimento de todos os processos de melhoria da vida dos recém-libertos da abolição e o fechamento de todos os jornais da época.
Vídeo da transladação dos restos mortais dos Ex-Imperadores do Brasil e últimas homenagens em Portugal, antes do embarque para sua amada terra brasileira.
Após dois dias da expulsão da Família Imperial, todos seus bens foram saqueados pelos militares e outros leiloados por preços irrisórios. Dona Teresa Cristina morreu logo após a expulsão. Pedro Augusto teve que ser trancado em uma cabine, pois não parava de gritar e tremer. O único que o acalmava era seu avô Pedro II, que entrava na cabine sentava ao chão e o abraçava em prantos, dizendo que tudo ficaria bem.
Quando a família imperial chegou a Lisboa uma multidão esperava no porto junto com seus familiares, aonde foi oferecido um palácio e uma voluptuosa fortuna e renda mensal para Pedro. Porém eles não aceitaram qualquer tipo de ajuda, mesmo Pedro tendo o título de Arquiduque de Portugal, Filho do Rei Pedro IV e tio do Rei de Portugal da época, Dom Carlos I. Dona Isabel, Conde D’Eu e seus três filhos foram para o Palácio D’Eu, de seu pai o Duque de Orleans, na França, onde tiveram uma vida confortável diante da fortuna que a família Orleans possuía.
Pedro II e Pedro Augusto partiram para o centro de Paris, aonde se hospedaram em um simples hotel de três estrelas, pago por um grande amigo de Pedro, o Barão de Loreto. Pedro Augusto preferiu ficar em uma casa de uma amiga íntima de Freud, que tinha grande estima pelo rapaz, um lugar maior e mais sossegado para acalmar o sofrido jovem. A casa ficava a três quarteirões do hotel onde Pedro se hospedara, então as visitas de seu avô eram diárias e levava seu neto aos museus e bibliotecas da cidade luz.
Tudo parecia que estava em formação uma nova realidade para todos, e a vida continuava. Pedro adorava dar aulas na principal biblioteca de Paris para universitários de história, geografia, botânica, grego e inglês. Sua rotina se resumia em acordar bem cedo, preparar suas aulas, ir para biblioteca, visitar exposições, visitar amigos, tomar café pela tarde e ler até cinco livros em uma única madrugada.
Traduzia de forma perfeita as maiores obras literárias para o português, e foi o Primeiro a traduzir a obra “Mil e uma Noites” do árabe original para o português do Brasil. A relíquia encontra-se na Biblioteca Nacional de Coimbra em Portugal.
Em 1890, uma pneumonia instalou-se em seus pulmões, limitando-o a ficar na cama de solteiro de seu quarto, escrevendo seus amados contos e poesias e lendo seus livros preferidos. Mesmo doente Pedro se aventurou em um passeio em carruagem aberta às margens do rio Sena em um dia chuvoso e extremamente frio. Alguns meses após a doença e tratamento sem bons resultados, morrera naquela cama sozinho.
Suas últimas palavras foram: “Deus que me conceda esses últimos desejos—paz e prosperidade para o Brasil.”
Enquanto preparavam seu corpo, um pacote lacrado foi encontrado no quarto com uma mensagem escrita pelo próprio Imperador: “É terra de meu país; desejo que seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha pátria”. O pacote que continha terra de todas as províncias brasileiras foi colocada dentro do caixão.
O velório foi digno de um imperador da França, devido ao prestígio que Pedro gozava entre os intelectuais e nobres da Europa. Um cortejo de mais de 300 mil pessoas tomaram as ruas de Paris, e todas as honras monárquicas foram feitas pelo governo Francês. Um fato histórico, pois nunca Paris tinha se mobilizado tanto, nem mesmo por falecimento de governantes locais. Reis, Rainhas, nobres, burgueses, intelectuais, artistas, filósofos, cientistas, escritores de todo o mundo estavam presentes no velório e no cortejo.
O Governo Militar Ditatorial brasileiro, revoltou-se pelo tamanho da comoção mundial em volta do falecimento de Pedro II, rompendo acordos diplomáticos com a França, Inglaterra e Alemanha. Nenhum representante do novo governo brasileiro foi mandado para o enterro do expulso imperador. A mídia foi fechada pelos militares no Brasil e não puderam ao menos noticiar o falecimento do monarca. A grande maioria do povo brasileiro só soube do acontecido semanas depois.
Pedro Augusto teve um novo surto, desta vez, sem o amparo de seus avós. Sua família paterna os Saxe Coburgo Gota internaram-lhe em um manicômio na Áustria, onde ficou confinado por décadas até sua morte. Em documentos do manicômio austríaco, registra-se que nenhum familiar próximo visitou D. Pedro Augusto até sua morte em 1935, já bem idoso.
Os Filhos de Dona Isabel e Conde D’eu, casaram-se com nobres europeias e formaram seus próprios clãs na França, Alemanha e Inglaterra. Dona Isabel, faleceu em 1921 e seu marido em 1922, deixando a fortuna da família Orleans para seus filhos e o sobrenome Orleans e Bragança, que garantiria um futuro seguro para as próximas gerações na Europa.
O Conde D’eu foi o último membro da família imperial a pisar em solo brasileiro. Por comemoração da Independência do Brasil, o governo convidou a princesa Isabel e seu marido para o evento em 1922, mas a princesa imperial do Brasil dona Isabel (Condessa D’Eu) já estava com a saúde muito debilitada, então o Conde seguiu viagem e recebeu muito carinho de pessoas que ainda eram vivas da época imperial. O próprio Príncipe de Orleans se emocionou vaáias vezes visitando o paço Isabel (atual palácio Guanabara). Ele disse: “tudo esta tão diferente, mas minha alma e de Isabel continuarão sempre aqui”.
No New York Times, de 5 de dezembro, vários elogios foram feitos a Dom Pedro II: ¨havia sido o mais ilustrado monarca do século e havia tornado o Brasil tão livre quanto uma monarquia pode ser.
No Brasil, os republicanos Quintino Bocaiuva (1836 – 1912) e José Veríssimo (1857 – 1916), seus adversários políticos, salientaram suas qualidades, dentre elas a simplicidade, o patriotismo, o espírito de justiça e liberdade.
Em 1920 foi anulado o decreto que bania a Família Imperial do Brasil e em 1921 chegaram no Rio de Janeiro os corpos de Dom Pedro II e de Dona Teresa Cristina, que estavam no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa (O Paiz, de 9 de janeiro de 1921). Ficaram na Catedral Metropolitana. Em 1925 os restos mortais dos monarcas foram para a Catedral de Petrópolis.
O Presidente e ditador Getúlio Vargas, permitiu em 1939 o translado dos restos mortais de D. Pedro II e Dona Teresa Cristina, para o Mausoléu Imperial, uma capela localizada à direita da entrada da Catedral de Petrópolis.
O túmulo foi esculpido em mármore de Carrara pelo francês Jean Magrou (1869 – 1945) e pelo brasileiro Hildegardo Leão Veloso (1899 – 1966).
Fonte: © EQUIPE PEDRO II DO BRASIL – https://www.facebook.com/PedroIIBrasil
Veja também: Funeral de Dom Pedro II em Paris e a Légion d’Honneur
Dom Pedro II, um entusiasta da fotografia (fotos arquivo pessoal)
—————————————————————-
Análise de Monteiro Lobato sobre a influência de D. Pedro II no caráter do povo brasileiro:
” A Luz do Baile” por Monteiro Lobato
“Despercebidos de todo passaram-se este mês dois aniversários. A 2 de dezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi este homem que não deixou lembranças neste país? Apenas um Imperador… Um Imperador que reinou apenas durante 58 anos… Tirano? Despótico? Equiparável a qualquer facínora coroado? Não.
Apenas a Marco Aurélio.
A velha dinastia bragantina alcançou com ele esse apogeu de valor mental e moral que já brilhou em Roma, na família Antonina, com o advento de Marco Aurélio. Só lá, nesse período feliz da vida romana, é que se nos depara o sósia moral de Pedro II.
A sua função no formar da nacionalidade brasileira não está bem estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como os há na natureza, dotados de força catalítica.
Agia pela presença.
O fato de existir na cúspide (1) da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas..
O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influencia catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, (2) o defraldador (3), o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais (4), passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade – mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da Equidade e da Justiça no trono.
Ignorávamos isso na Monarquia.
Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a força catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno.
A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, o mesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na ausência do imperial freio, ordem de soltura, desaçamaram a alcatéia (6) dos maus instintos mantidos em quarentena. Daí, o contraste dia a dia mais frisante entre a vida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boas intenções quadrienais, que se revezam na curul (7) republicana.
Pedro II era a luz do baile.
Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social.
Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem-se palavreados de tarimba (8), desaparecem as jóias…
Como, se era a mesma gente!
Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes cívicas e morais em início de cristalização.
Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise (9) imperial, e o processo cristalisatório se operaria completo. O animal, domesticado de vez, dispensaria o açamo(10). Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o caráter. E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais apurados em cultura.
Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia.
Mas sobrevém, inopinada, a República.
Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traição e a inconsciência da força bruta, substabelecem-se numa procuração falsa e destroem a obra de Pedro II “em nome da nação”.
A nação não reage, inibida pela surpresa, e também porque lhe acenam logo com um programa de maravilhas, espécie de paraíso na terra.
É sempre assim. Não variam com a longitude nem com a latitude os processos psicológicos de assalto ao poder.
Aqui, assaltado o poder e conquistadas as posições, houve um geral arrancar de máscaras: Enfim, sós.
O “Alagoas” levava a bordo a luz importuna, a luz que empatava. E começou a revista de ano que há trinta anos diverte o país.
Que diverte, mas que envenena.
Que envenena e arruína.
O que havia de cristalização social dissolve-se; volta ao estado de geléia.
Sucedem-se na cena os atores, gingam-se as mesmas atitudes, murmuram-se as mesmas mensagens, reeditam-se eternas promessas.
O povo, cansado e descrente, farto de uma palhaceira destituída da mínima originalidade, cochila nas arquibancadas. Nem aplaude, nem assobia; dorme e sonha, entre outras coisas, com o inopinado surto em cena de um delegado de polícia louro e dez praças de uniforme desconhecido, que ponham fim a pantomima.
Não intervém para realizar por mãos próprias o “basta”, porque se sente tão gelatinoso como os atores. Nada o galvaniza, não o espanta nenhum jangotismo de tony.
Abudistado, (11) assiste até o indecoroso matar-se em massa.
As cenas do ano 1900, desenroladas na capital da República, durante a última epidemia, são “os noves fora nada” da obra do 15 de novembro. A máquina governamental, caríssima, não funciona nos momentos de crise. Não é feita para funcionar, senão para sugar com fúria acarina o corpo doente do animal empolgado.
De norte a sul o povo lamuria a sua desgraça e chora envergonhado o que perdeu.
Tinha um rei. Tem sátrapas.
Tinha dinheiro. Tem dívidas.
Tinha justiça. Tem cambalachos de toga.
Tinha parlamento. Tem antessalas de fâmulos (12).
Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irrisão e desprezo.
Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado.
Tinha soberania. Tem cônsules estrangeiros assessorando ministros.
Tinha estadistas. Tem pegas. (13)
Tinha vontade. Tem medo.
Tinha leis. Tem estado de sítio.
Tinha liberdade de impressa. Tem censura.
Tinha brio. Tem fome.
Tinha Pedro II. Tem… Não tem!
Era. Não é.
Numa época terrível para a vida universal, em que cada país procura chefiar-se por intermédio dos homens de suprema energia, Wilson, Loyd George, Clemenceau, Ebert, o Brasil apalpa pescoço e não sente cabeça. Chegou a maravilha teratológica (14) duma acefalia inédita.
Anos atrás foi apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de lei mandando trasladar os restos de Pedro II para a terra natal. A consciência desse ramo do Legislativo, num assomo de revivescência, votou, em apoteose, a lei. Mauricio de Lacerda definira, nesse dia, a política republicana, como feita de alcouces (15) e corrilhos (16).
A Câmara desmentiu-o por cinco votos. Mas o Senado confirmou-lhe o asserto, por quase unanimidade. Não convinha à turba de sarcorhamphus (17), pacificamente acomodada em torno da presa a devorar – a Pátria – a transladação dos restos mortais. Quem sabe, conservariam essas cinzas algo da misteriosa força que caracterizou em vida Pedro II?
E viriam elas – agindo pela presença – perturbar a paz do festim? “Nada, não perturbemos nossa digestão” – pensou o Senado. E o projeto caiu.
O Brasil é uma nação a fazer. Ou refazer, já que destruíram os alicerces da primeira tentativa séria. Cortado o fio da evolução natural, baralhados os materiais, dispensados os operários honestos e hábeis, hipotecadas as suas rendas, a política de hoje vive de uma indústria nova: aluguel da consciência. Cada empresa estrangeira aluga uma série. De uma, a mais poderosa de todas, é sabido que chegou à perfeição de fichar (18) comercialmente o preço de homens públicos.
“É a deliquescência (19) final, o esverdear”…este estado de coisas é, entretanto, galvanizável. Bastaria repor na máquina a peça mestra que tudo coordena, essa forca catalítica sem a qual nenhum povo como o nosso, instável, em formação, produto dos mais díspares elementos étnicos, conseguiu jamais alcançar as etapas sucessivas da nacionalidade.
Um homem, uma continuidade de ação, um pulso – o bisneto de Marco Aurélio ou Rosas.
A força mansa que norteia o evoluir ou a força violenta que arrasa, desespera, e cria pela dor o instinto de defesa.
Tudo é preferível ao reino manhoso dos guzanos (20) de boca dupla – uma que mente ao povo, outra que o rói até aos ossos.
Esperemos em Anhangá, o deus brasileiro. Peçamos-lhe, neste mês dos aniversários imperiais, que ressuscite e reponha no seu lugar o espírito bom que neutralizava a influência dos espíritos maus.
É a nossa derradeira esperança, Anhangá…
(1) Cúspide – ápice, cume. (2) Peculatário – fraudador
(3) Defraldador (que incita ao pecado ou delito) (4) Congenial – por índole
(5) Desaçamaram – soltaram (no contexto) (6) Alcatéia – grupo de lobos
(7) Curul – Dizia-se de uma cadeira de marfim reservada outrora a certos magistrados romanos. Alta hierarquia, poder (8) Tarimba – cama dura de soldados. No contexto, subentende-se linguagem usada entre soldados.
(9) A catálise é a mudança de velocidade de uma reação química devido à adição de uma substância (catalisador). Subentende-se educação do caráter nacional. (10) freio, mordaça.
(11) Abudistado – deriva de budismo, ausência de ação. (12) Servos
(13) Pegas – Prostitutas (14) Deformado, monstruoso
(15) Prostíbulo (16) Conciliábulo, conluio de intrigantes
(17) Urubus (18) Fichar – fixar (19) Dissoluçã
(20) Vermes (21) espírito maligno, demônio”
Publicação Ambiente Legal, 05/12/2020
Edição: Ana A. Alencar