“Economia de guerra” pode acabar com o desemprego involuntário
Por Márcio Gimene*
Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar como os gastos públicos podem ser organizados de forma a acabar com o desemprego involuntário. A primeira seção aborda o tema pela ótica das guerras convencionais. A segunda seção apresenta as principais inconsistências da visão dominante sobre gasto público. A terceira seção informa como os governos monetariamente soberanos são capazes de ampliar seus gastos, sem que isso resulte em descontrole inflacionário. A quarta seção demonstra como, na ausência de guerras convencionais, a lógica da “economia de guerra” pode ser acionada de forma a acabar com o desemprego involuntário. Em seguida, são apresentadas as considerações finais.
Os manuais de economia e finanças públicas geralmente supõem um mundo imaginário de paz e harmonia social no qual as guerras, as crises econômicas, o desemprego e a pobreza são aspectos secundários. No lugar dessas variáveis incômodas, os manuais costumam exaltar as supostas virtudes do “livre comércio”, dos “mercados perfeitos”, da “concorrência pura” e da “austeridade fiscal”, supondo que as nações atualmente desenvolvidas se pautaram por tais abstrações teóricas em suas trajetórias de desenvolvimento. As análises históricas e territorialmente situadas demonstram, no entanto, que as políticas públicas implementadas pelas nações bem-sucedidas contrariam frontalmente as recomendações dos manuais padrões de economia e finanças públicas.
No momento em que este artigo é escrito, o mundo se depara com os desafios sanitários, econômicos e sociais decorrentes da pandemia do novo coronavírus. Em situações como a atual, mesmo os mais fervorosos defensores do “livre mercado” e da “austeridade fiscal” se veem obrigados a reconhecer a importância da ação governamental para assegurar a sobrevivência e a segurança da população, seja por meio de ações diretas ou coordenadas com agentes privados, evitando o colapso dos sistemas produtivos e de distribuição, o desemprego em massa, a fome e a pobreza. É o momento em que todos viram “keynesianos”. Contando com amplo apoio da sociedade e dos parlamentos, os governos ampliam seus gastos, o que é fundamental para viabilizar o enfrentamento das adversidades imediatas e para manter a demanda agregada em patamares que impeçam o colapso econômico e social.
O objetivo deste artigo é demonstrar como os gastos públicos podem ser organizados de forma a acabar com o desemprego involuntário. A primeira seção aborda o tema pela ótica das guerras convencionais, por meio das quais os Estados nacionais acumularam (e continuam acumulando) poder e riqueza. A segunda seção apresenta as principais inconsistências da visão dominante sobre gasto público. A terceira seção informa como os Estados monetariamente soberanos são capazes de ampliar seus gastos, sem que isso resulte em descontrole inflacionário. A quarta seção demonstra como, na ausência de guerras convencionais, a lógica da “economia de guerra” pode ser acionada de forma a acabar com o desemprego involuntário. Em seguida, são apresentadas as considerações finais.
A guerra convencional como fonte de acumulação de poder e riqueza
O sistema político mundial é uma máquina de acumulação de poder e riqueza, e seu motor principal tem sido a competição e a guerra entre seus Estados e economias nacionais. Conforme demonstrado por Fiori (2007, 2014), dentro desse sistema não existem países satisfeitos; todos estão sempre se propondo a aumentar seu poder e sua riqueza, e, nesse sentido, todos são expansivos – em particular as grandes potências que já ocupam o topo da hierarquia do poder e da riqueza mundiais. Por isso, esse sistema pode ser comparado com um universo em expansão contínua, onde todas as potências que lutam pelo poder global estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. Como consequência, dentro desse sistema nunca houve nem haverá paz perpétua, nem hegemonia estável. Pelo contrário: o que ordena e estabiliza as relações hierárquicas internas do sistema mundial, paradoxalmente, é a existência de conflitos crônicos, junto com a permanente possibilidade de uma nova guerra entre as grandes potências.
Em todos os países que ocuparam ou ainda ocupam posições de liderança política e econômica dentro das respectivas regiões ou do sistema interestatal como um todo, o desenvolvimento econômico obedeceu a estratégias e seguiu caminhos que foram desenhados em resposta a grandes desafios sistêmicos, de natureza geopolítica. Independentemente de quais fossem as coalizões de interesses, em todos esses países em algum momento formou-se um bloco de poder que respondeu a esses desafios externos por meio de estratégias ofensivas e políticas de apoio ao desenvolvimento nacional.
Mesmo no caso dos pequenos países com alto padrão de vida, que enriqueceram sem se transformar em grandes potências, é possível identificar a influência e a importância direta ou indireta de sua posição geopolítica sobre seu desenvolvimento. Em geral, são países cuja posição territorial os coloca em algum ponto decisivo da competição ou do enfrentamento das grandes potências, transformando-os em protetorados militares ou econômicos de alguma das potências envolvidas nos conflitos geopolíticos. Esses países podem estar próximos ou distantes da potência protetora, mas sempre estão próximos do território de seus concorrentes ou adversários e se submetem em alguma medida à política de defesa de sua potência protetora em troca do acesso privilegiado a seus mercados e fluxos de crédito, financiamento e investimento direto.
Todos os países vitoriosos se formaram e se desenvolveram dentro de tabuleiros geopolíticos altamente competitivos, com um sentimento constante de cerco e de ameaça externa, de invasão ou de fragmentação de seus territórios. Isso explica a centralidade da preocupação que manifestam com relação à própria defesa, e também sua permanente preparação para futuras guerras.
Em todos os casos de sucesso econômico também se verifica a existência de um núcleo estratégico relativamente unido e coeso dentro do próprio Estado, que foi o grande responsável pela definição e sustentação dos objetivos estratégicos que se mantêm constantes durante longo tempo, apesar das eventuais mudanças de governo ou de regime político. Esses núcleos, ou centros de poder, demonstram grande flexibilidade e grande capacidade de adaptação e mudança, sem alterar seus objetivos, frente a eventuais alterações na configuração do sistema de poder em que estão inseridos.
Além disso, todas as grandes potências foram expansivas desde o momento de consolidação de seus centros de poder internos e utilizaram suas economias nacionais como instrumento de poder a serviço de suas estratégias. Isto é, definiram as grandes metas de suas economias nacionais e de sua própria política econômica a partir de objetivos estratégicos situados no campo do poder. Por isso, a luta dessas grandes potências parece quase inseparável da luta pela expansão contínua do seu território econômico supranacional e pelo controle monopólico de novos mercados, de bens, créditos ou investimentos.
Nessa luta, todas as grandes potências desrespeitam sistematicamente as regras e instituições competitivas de mercado. As potências vencedoras adotam práticas protecionistas até o momento em que se veem em condições de submeter seus produtores nacionais à concorrência internacional. Essas mesmas potências operam sistematicamente com orçamentos públicos deficitários, o que não as impede de manter sua credibilidade fiscal e financeira, acumulando ainda mais poder.
A Inglaterra, por exemplo, considerada por muitos um exemplo de sucesso do livre comércio, desde o final do século 15 utilizou tarifas de exportação sobre as matérias-primas locais, como forma de encarecer a produção de têxteis em outros países, tornando mais competitiva a sua própria indústria têxtil. Como demonstrado por Reinert (2016), na medida em que a fabricação de lã cresceu na Inglaterra, as tarifas de exportação aumentaram, até o país ter condições de processar toda a lã produzida. Diversos incentivos foram criados para atrair profissionais especializados de localidades como Veneza e Holanda. Além disso, aos fabricantes de lã recém-
-estabelecidos na Inglaterra, concederam-se isenções fiscais por certo período e monopólio em determinadas regiões. Destacam-se ainda os Atos da Navegação (editados logo após a Revolução de 1648, fechando os portos ingleses aos navios estrangeiros), o controle do Banco da Inglaterra, a estatização das alfândegas e a nacionalização das finanças e do crédito, que se somaram à mobilização permanente para a guerra e à criação dos sistemas de endividamento público e de tributação estatal como fatores fundamentais de sucesso do poderio militar e econômico inglês.
A Inglaterra só passou a flexibilizar suas práticas protecionistas no século 19, quando já exercia ampla liderança no sistema político interestatal.
Os Estados Unidos, também considerados no senso comum um exemplo de sucesso do livre comércio, fizeram ou participaram desde 1783 de aproximadamente 85 guerras (em média, uma a cada três anos, mesmo padrão da Inglaterra, que fez ou participou de aproximadamente 110 guerras entre o final do século 17 e meados do século 20). Assim como os ingleses, os estado-unidenses utilizam/utilizam largamente do poderio militar para impor seus interesses sobre outras nações (ou, de forma mais sutil, persuadi-las a que se submetam aos seus interesses). E fizeram/fazem isso, como os ingleses, utilizando-se largamente de orçamentos públicos deficitários e de práticas protecionistas. (FIORI, 2014)
Desde a sua origem como nação independente, os Estados Unidos pautaram sua política econômica pelas recomendações de Alexander Hamilton, sintetizadas no seu relatório enviado, em 1791, ao Presidente da Câmara dos Deputados (HAMILTON, 1995). Neste relatório, o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos elenca uma série de argumentos para que o governo apoie o desenvolvimento das atividades manufatureiras nacionais, de forma a tornar o país independente de outras nações em seu abastecimento militar e de bens essenciais.
Hamilton constatou que as nações mais prósperas subvencionam a exportação de bens manufaturados. Logo, para poderem competir em igualdades de condições, os iniciadores de novas atividades manufatureiras nos Estados Unidos precisariam contar com a intervenção e a ajuda do seu próprio governo. Para tanto, deveriam ser emulados incentivos governamentais que se mostraram bem-sucedidos na Inglaterra e em outros países, tais como:
• Tarifas alfandegárias protecionistas sobre os artigos estrangeiros rivais dos produtos nacionais que se pretendam fomentar;• Proibição da importação de artigos rivais ou imposição de tarifas de importação equivalentes a uma proibição;• Veto à exportação de matérias-primas necessárias às manufaturas;• Subsídios pecuniários aos produtores nacionais;• Premiações pecuniárias e honoríficas aos produtores nacionais que apresentem alguma superioridade ou excelência especial;• Isenção tarifária para as matérias-primas (ou reintegração das tarifas cobradas) necessárias nas atividades manufatureiras;• Fomento de novos inventos e descobertas feitas no país e introdução dos que sejam feitos em outros países, particularmente os referentes à maquinaria; e• Agilização do transporte de mercadorias.
Quanto aos recursos necessários, Hamilton recomendou a criação de capital por meio da emissão de títulos públicos. O secretário do Tesouro esclareceu que a emissão de títulos não devia ser confundida com o mero redirecionamento de uma quantidade equivalente de capital previamente aplicado em outra atividade. Afinal, a dinâmica da dívida pública permite que as despesas com pagamento de juros e a gradual amortização do principal sejam financiadas por meio da emissão de novos títulos. Isso significa que o capital originalmente deslocado para a compra de títulos públicos retorna ao seu proprietário inicial acrescido de juros. Enquanto isso, o governo que emite o título consegue criar o capital necessário para viabilizar o progresso econômico e social da nação.
Hamilton constata que esse mecanismo foi decisivo para viabilizar o progresso econômico inglês, cabendo aos Estados Unidos seguir os mesmos passos. E conclui seu relatório afirmando que nos países onde já existe uma grande riqueza privada, muito pode ser conseguido mediante os aportes voluntários de indivíduos patriotas, mas, em uma nação como os Estados Unidos daquela época, o erário público deveria suprir a deficiência dos recursos privados no estímulo ao desenvolvimento das atividades manufatureiras.
E foi em grande medida seguindo as recomendações de Hamilton que os Estados Unidos se transformaram, cerca de um século e meio após a sua fundação, na maior potência mundial.
É nesse sentido que a máxima em voga nos Estados Unidos do século 19, “não faça como os ingleses dizem para fazer, faça como os ingleses fizeram” é hoje atualizada para “não faça como os americanos dizem para fazer, faça como eles fizeram”. Foi com esse mesmo espírito que List (1986) afirmou que as nações mais avançadas costumam chutar a escada pela qual subiram. Isto é, recomendam às nações periféricas políticas distintas das por elas praticadas em suas próprias trajetórias de desenvolvimento.
Portugal, Espanha, Itália, França, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Rússia, China, Japão… Todas as nações que exerceram ou exercem liderança internacional ou regional utilizaram-se/utilizam-se largamente da “economia de guerra” como instrumento de mobilização de recursos para acumulação de poder e riqueza. Seja por meio de conflitos militares convencionais e/ou por meio de políticas de bem-estar social (especialmente após a Segunda Guerra Mundial), todas essas nações utilizaram a preparação para as guerras (existentes ou potenciais) como elemento de coesão social e mobilização das forças produtivas nacionais.
Inconsistências da visão dominante sobre gasto público
Os manuais de introdução à economia e o noticiário veiculado diariamente nos grandes meios de comunicação geralmente sustentam que o gasto público deve ser contido para evitar pressões inflacionárias e outros problemas supostamente típicos da ação governamental, tais como práticas de corrupção e ineficiências em geral. Normalmente se supõe que os governos financiam seus gastos por meio dos tributos arrecadados junto à população e, sendo assim, devem seguir a lógica de não gastar mais do que arrecadam.
No entanto, quando acontecem guerras e crises econômicas, como a atualmente em curso, decorrente da pandemia do novo coronavírus, subitamente os defensores do “livre mercado” e da “austeridade fiscal” se transformam em defensores da expansão dos gastos públicos. Passado o momento mais crítico dessas situações de comoção nacional/internacional, voltam a repetir o mantra de que é preciso controlar o gasto público para evitar pressões inflacionárias e outros problemas supostamente típicos da ação governamental.
Essa visão ainda hoje dominante sobre gasto público é referenciada na Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), que tem como autores principais David Hume, Irving Fisher, Alfred Marshall, C. Pigou e Milton Friedman. Seu ponto de partida é a equação de troca (MV = Py), pela qual a quantidade de moeda circulando (M), multiplicada pela velocidade desta circulação (V), é capaz de fazer circular a produção real total de uma economia (y), multiplicada pelos seus preços (P).
Uma das principais fragilidades teóricas dessa abordagem é supor que o entesouramento de moeda seja irracional. Ao desconsiderar a possibilidade de que haja demanda especulativa por moeda e ativos financeiros, a TQM assume como suposto que V é estável ou previsível, pois a moeda recebida seria sempre recolocada em circulação na velocidade máxima permitida pelo sistema de pagamentos vigente.
O mesmo equívoco é encontrado na Lei de Say, sintetizada pela assertiva “a oferta cria a sua própria procura”. Jean-Baptiste Say afirma que, quando um produto é criado, nesse mesmo instante forma um mercado para outros produtos. Isso ocorreria porque os processos de produção de bens e serviços proporcionam rendimentos em termos de salários, lucros, juros e aluguéis, gerando também, por meio desses rendimentos, a demanda supostamente suficiente para consumir os bens e serviços inicialmente ofertados. Say desconsidera a existência de sobra permanente ou duradoura de produção supondo que os excessos de oferta localizados acabam sendo vendidos a preços mais baixos. De acordo com a Lei de Say, os mecanismos de mercado são capazes de impedir o surgimento de excessos de produção e as crises econômicas decorrentes desses excessos.
Seguindo essa lógica, os adeptos da TQM concluem que: i. o único efeito do aumento de M (quantidade de moeda circulando) na equação de troca é o aumento proporcional de P (preços); e ii. o principal responsável pela inflação é o Estado, quando tenta animar a economia ofertando moeda. De acordo com essa visão, o ativismo estatal na política econômica é desnecessário (pois os mercados supostamente seriam eficientes mecanismos autorreguladores da dinâmica econômica) ou nocivo (pois necessariamente resultaria em aumento do nível geral de preços)1.
Como observado por Keynes (1964), essa abordagem desconsidera que a economia é permeada pela incerteza, algo diferente de risco, porque este último é calculável, ou probabilizável, enquanto a incerteza não é. A incerteza é uma consequência do fato de que as decisões econômicas envolvem expectativas subjetivas sobre o que ocorrerá no futuro, e este é desconhecido. Como as decisões econômicas são descentralizadas, ninguém sabe, com antecedência, qual será o resultado líquido do conjunto de decisões. Isto dificulta e afeta a tomada de decisões, em especial as de prazo mais longo, como é o caso da decisão de investir. Não é possível probabilizar este tipo de incerteza, porque ninguém conhece todas as possibilidades de ocorrência.
A percepção de incerteza leva os agentes econômicos a desejarem se proteger. Para isso, eles retêm moeda, porque a moeda é o ativo mais líquido da economia. A qualquer momento a moeda pode ser trocada por qualquer bem ou serviço ou ativo real ou financeiro, sem que, em função da celeridade da operação, os preços da transação se modifiquem. É essa preferência pela liquidez em situações de incerteza que motiva o entesouramento ou a retenção de moeda, o que pode inibir tanto o consumo quanto o investimento.
O investimento em particular depende de que as expectativas de rendimentos futuros (eficiência marginal do capital, conforme proposto por Keynes) sejam maiores do que os rendimentos proporcionados pelas taxas de juros vigentes. Quando a incerteza é grande, a eficiência marginal do capital cai, a taxa de juros sobe e, com isso, o investimento é inibido e o emprego e a renda da economia deixam de crescer ou mesmo caem.
Keynes também evidenciou os equívocos da crença de que é preciso haver poupança prévia para que haja investimento. Como demonstrado pelo economista britânico, a poupança não depende prioritariamente da taxa de juros, e sim da renda dos agentes econômicos. Uma pessoa rica consumirá parte de sua renda, mas geralmente sobrará uma parcela na forma de poupança. Já uma pessoa pobre tende a consumir toda a sua renda e, mesmo que a taxa de juros suba, sua poupança não aumentará por causa disso.
Keynes alertou também que a moeda é importante porque pode haver investimento sem haver poupança se os bancos ampliarem seus empréstimos (o que requer que sua preferência pela liquidez esteja baixa). Eles podem fazê-lo sem poupança, porque podem emprestar além dos depósitos. Quando o investimento ocorrer, ele criará renda multiplicada e, como a poupança depende da renda, ela também surgirá de forma multiplicada, mas depois do investimento. Assim, o ato de investir é mais decisivo para viabilizar a poupança do que o ato de poupar o é para viabilizar o investimento.
Quando reconhecemos que, na dinâmica real da economia, pode haver entesouramento de dinheiro ou preferência pela liquidez do público e dos bancos, é forçoso reconhecer que a velocidade de circulação da moeda não é estável, nem calculável, nem previsível. Se essa velocidade muda de forma não previsível, o Banco Central não consegue controlar a quantidade de dinheiro em circulação. Da mesma forma, a moeda não pode ser considerada neutra porque, se houver criação de moeda pelos bancos ou pelo Banco Central, ou se as pessoas reduzirem a preferência pela liquidez, a taxa de juros cai e o investimento passa a ser estimulado, porque para maior quantidade de investidores a expectativa de rendimento futuro (eficiência marginal do capital) superará a taxa de juros. Com isso, o investimento aumentará e haverá uma multiplicação do produto real da economia, multiplicando também a renda e o emprego. A moeda não é, pois, neutra. Ao contrário: ela afeta a economia real.
Quando constatamos que a moeda não é neutra, na equação de trocas (MV=Py) sempre que a quantidade de moeda circulando (M) cresce, não necessariamente haverá crescimento dos preços (P), isto é, da inflação, e menos ainda na mesma proporção, porque a produção (y) cresce. Assim, não é possível dizer que a inflação é necessariamente causada por excesso de moeda.
Se o investimento depende fundamentalmente de dois fatores (eficiência marginal do capital > taxa de juros), ambos relacionados à incerteza, então ele depende de uma decisão volátil, o que significa que a produção, a renda e o emprego também são de certa forma instáveis. A instabilidade é, então, algo intrínseco ao capitalismo, requerendo a ação do Estado para mitigá-la.
Minsky (2013) aprofundou esse ponto, enfatizando que a estabilidade econômica é desestabilizadora. O ambiente econômico de tranquilidade, abundância produtiva e baixo desemprego proporcionado pela dinâmica retroalimentadora do investimento privado costuma esconder a formação de uma bolha financeira que, ao estourar, inverte as tendências expansionistas responsáveis pela sustentação da expansão econômica. Quanto mais duradouros e aparentemente resistentes são os períodos de expansão econômica, mais violentas tendem a ser as contrações desencadeadas pela inversão da dinâmica do investimento privado.
Embora a expansão econômica estável seja desestabilizadora, a instabilidade econômica recessiva não é necessariamente estabilizadora. Ou seja, enquanto as dinâmicas financeiras da alavancagem e do incentivo à realização de ganhos de capital crescentes tornam cada vez mais provável que um ciclo expansionista impulsionado pelo gasto e endividamento privados seja revertido e dê lugar à recessão, a dinâmica financeira que acompanha as recessões não torna cada vez mais provável que ocorra a sua inversão para a expansão econômica. Quanto menos as pessoas investem, mais escassas se tornam as oportunidades de vender mercadorias lucrativamente, tornando o investimento privado ainda menos atraente e reforçando a tendência contracionista. Um cenário de rendas em queda e instabilidade social e política acentua a imprevisibilidade do ambiente econômico, tornando cada vez mais valiosa a liquidez da moeda e de ativos imateriais. Como em tal cenário faz-se necessário remobilizar a capacidade ociosa formada durante a recessão, a realização de novos investimentos privados acaba sendo adiada. (CONCEIÇÃO, 2020)
Essa é uma das principais razões pelas quais os mercados não funcionam bem sem a ação do poder público atenuando os ciclos econômicos. A política econômica precisa garantir que o emprego e a produção não caiam de forma multiplicada e que, ao contrário, possam crescer, atenuando os problemas de desemprego, ao ampliar o investimento, multiplicando a produção e a renda.
Como apontado por Keynes e Minsky, quando a rentabilidade esperada do capital se encontra muito baixa, indicando pessimismo dos investidores potenciais, o poder público precisa usar especialmente a política fiscal para ele próprio investir. Ele pode investir, porque não tem o objetivo de lucro da iniciativa privada e, por isso, não precisa comparar a eficiência marginal do capital com a taxa de juros. Ao contrário, o objetivo dele nos assuntos econômicos é lidar com os problemas que o mercado sozinho não resolve, em particular o desemprego. Ao contrário do que muitos imaginam, o aumento dos investimentos públicos não resulta em redução dos investimentos privados. Ao investir, o Estado consegue multiplicar a renda e o emprego e, ao fazê-lo, muda o pessimismo dos investidores privados, já que eles passam a ter maior expectativa de demanda pelos seus produtos, porque o emprego e a renda estarão crescendo. Isso eleva a rentabilidade que esperam do investi- mento, que passa a superar a taxa de juros, e o investimento privado se amplia.
É por isso que Keynes sugeriu dividir o orçamento dos gastos do governo em dois tipos: o orçamento de gastos correntes (que segundo ele deveria estar equilibrado) e o orçamento de investimentos (cujo equilíbrio a médio e longo prazo poderia ser garantido com o crescimento multiplicado da produção, da renda e do emprego e, consequentemente, da arrecadação). Especialmente nos ciclos de baixo crescimento econômico, o Estado precisa acelerar os investimentos públicos, pois assim estará estimulando os investimentos privados e, consequentemente, a aceleração do crescimento econômico.
A lógica de “nunca gastar mais do que arrecada” possui forte apelo popular porque as famílias e empresas experimentam diariamente o desafio de controlar despesas e ampliar receitas. Acontece que essa analogia desconsidera algo elementar: os governos monetariamente soberanos devem expandir os gastos públicos sempre que isso for necessário para estimular o crescimento econômico e a busca do pleno emprego. A desconsideração desse fato elementar decorre em grande medida da confusão que muitas vezes se faz entre a história da moeda física, cunhada em metais, com a história do conceito de moeda, que antecede a cunhagem metálica em pelo menos 4 mil anos.
Como gastam os governos que criam sua própria moeda?
Pesquisas antropológicas, como as realizadas por Graeber (2014), demonstram que a ideia de dinheiro virtual existe há milhares de anos em diversas civilizações. Tabuletas de barro, conchas e diversas outras formas de representação de um crédito contra o rei ou o soberano local, sem nenhum valor intrínseco, circularam milhares de anos antes da cunhagem de moedas metálicas. Na maior parte da história da humanidade, a moeda foi considerada uma medida abstrata de valor.
A moeda metálica é, portanto, apenas uma das formas que pode tomar a moeda. Uma forma que prevaleceu durante curtos períodos da história das civilizações.
Ao tomar o lastro metálico da moeda como a moeda propriamente dita, confunde-se uma singularidade histórica da moeda com o seu conceito abstrato. Uma moeda é uma medida abstrata de valor, como 1 quilograma é uma medida abstrata de peso. Assim como o 1 quilograma já teve expressão física, normalmente um cilindro de ferro fundido utilizado nas antigas balanças de dois pratos, a moeda também já teve expressão física metálica. Foram ambas aposentadas pelo avanço da tecnologia. (RESENDE, 2017)
No século 17, quando David Hume formulou a hipótese de que o nível de preços seria proporcional à quantidade de moeda em circulação (a base da TQM), é possível que esta fosse uma boa aproximação da realidade. Afinal, a moeda era lastreada no ouro, e a descoberta do ouro nas Américas, importado para uma Europa estagnada, com dificuldade para expandir a oferta de bens e serviços, deve realmente ter tido impacto inflacionário. Quando a moeda tinha expressão física (era uma quantidade física de ouro ou um múltiplo da quantidade de ouro na economia), podia fazer algum sentido postular que dado o produto (y), o nível de preços fosse proporção 1/V do estoque de moeda M. Mas este raciocínio certamente não faz sentido em uma economia cujo sistema financeiro esteja desvinculado de lastro físico.
Diante dessa obviedade, os adeptos da TQM tentaram repaginá-la por meio do conceito de multiplicador bancário. De acordo com a Teoria do Multiplicador Bancário (TMB), o crédito criado pelo sistema bancário é também uma proporção fixa do estoque de ouro. Parte-se de um sistema de reservas fracionárias, ou seja, de um sistema em que os bancos mantêm uma fração dos depósitos como reservas e expandem os seus empréstimos sempre que têm reservas excedentes. O total de crédito, ou de moeda bancária, seria um múltiplo das reservas em ouro do sistema.
A lógica da moeda lastreada foi dessa forma transposta para o sistema de moeda fiduciária. O papel do estoque de ouro passou a ser atribuído à chamada base monetária (composta pelo papel-moeda em poder do público mais as reservas no Banco Central). Todavia, com a moeda desvinculada de lastro físico, nem o Banco Central nem os bancos de depósitos precisam de reservas para emprestar.
Ao contrário do que sugerem a TQM e a TMB, o Banco Central não controla a base monetária. Afinal, a base monetária não é mais composta por uma mercadoria física que o Banco Central precise adquirir. É simplesmente o resultado do que o Banco Central vier a creditar eletronicamente nas reservas dos bancos.
Isso ficou evidente quando, em resposta à crise financeira mundial de 2008, os bancos centrais aumentaram a oferta de moeda em uma escala impressionante, sem que isso resultasse em aumento da inflação. Como aponta Resende (2019), o Banco Central dos Estados Unidos multiplicou a base monetária por 60 em menos de 10 anos, aumentando as reservas bancárias de US$ 50 bilhões para US$ 3 trilhões naquele país. E as taxas de inflação continuaram baixas. O mesmo aconteceu no Japão, na Inglaterra e na Zona do Euro. A inflação nestes países manteve-se extremamente baixa, contrariando a crença de que o aumento da oferta de moeda provoca necessariamente inflação.
Desde então, tem sido crescente o reconhecimento de que a essência da moeda é ser uma unidade de crédito contra o Estado. Uma unidade de crédito com a qual é possível redimir obrigações tributárias e que passa a ser adotada como a unidade de conta padrão da economia.
Lerner (1943, 1947) usou a expressão finanças funcionais para explicar que o governo que realiza pagamentos por meio da entrega de uma moeda que ele mesmo cria não pode ficar insolvente. Quando há desemprego por escassez de demanda agregada, cabe ao poder público complementar a demanda diretamente incrementando as suas compras, ou indiretamente aumentando a renda disponível aos consumidores pela redução dos impostos ou pela transferência unilateral de renda. Já quando o produto agregado está próximo do potencial e há risco inflacionário por excesso de demanda, o poder público deve reduzir suas compras e/ou retirar renda disponível dos consumidores por meio do aumento de impostos e reduções nas transferências unilaterais.
Isso era mais claro até cerca de 200 anos atrás, quando os reis literalmente ordenavam a cunhagem de moedas para gastá-las e, em seguida, recolhê-las de volta por meio da cobrança de tributos.
Com a criação dos bancos centrais, essa sequência de eventos não é mais tão evidente. Embora o sistema monetário atual seja mais sofisticado, e em grande medida dispense o uso de objetos físicos como as moedas metálicas, os conceitos básicos não são muito diferentes daqueles verificados nos últimos quatro milênios: para que o soberano possa recolher na forma de tributos as moedas que ele mesmo cria, ele precisa primeiro colocar essas moedas em circulação adquirindo bens ou serviços da população local.
Como demonstrado por Wray (2003, 2015, 2019), o gasto do governo que cria a sua própria moeda precisa ocorrer antes do recolhimento de tributos nesta mesma moeda. Do ponto de vista lógico, não é possível ocorrer o contrário, pois neste caso os agentes privados não teriam como obter a moeda para devolvê-la na forma de tributos ao governo que a criou. Logo, não faz sentido supor que os governos que emitem sua própria moeda precisem primeiro arrecadar tributos ou emitir títulos públicos para financiar seus gastos nas moedas que eles mesmos criam.
Como ressaltava Minsky, embora qualquer pessoa possa criar moeda, o problema reside em ela ser aceita por outras pessoas. O diferencial da moeda estatal, que faz com que ela tenha ampla aceitação, é justamente o fato de ser exigida para o pagamento de tributos cobrados pelo governo.
A função primordial dos tributos não é, portanto, financiar os gastos públicos, e sim criar demanda para a moeda estatal. Dado que o não pagamento de tributos pode resultar em sanções diversas, tais como a cobrança de multas, confisco de bens ou mesmo a prisão do devedor, a demanda pela moeda estatal faz com que ela seja amplamente aceita dentro dos domínios daquele Estado.
Para entender essa dinâmica é importante termos em mente um princípio básico de contabilidade: todo ativo financeiro corresponde a um passivo financeiro. Em uma economia fechada, isso significa que o superávit obtido pelo setor público corresponde necessariamente a um déficit no setor privado, e vice-versa. Quando o setor externo é incluído na análise, o raciocínio é o mesmo. Considerando como “resto do mundo” os governos, as empresas e as famílias das nações com as quais um determinado país possui relação financeira, temos a seguinte identidade:
balanço privado doméstico + balanço público doméstico + balanço externo = 0
Ou seja, se um desses setores apresentar balanço superavitário em determinado período, ao menos um dos outros dois apresentará balanço deficitário (WRAY, 2015). Como não é possível que esses três setores apresentem superávits em um mesmo período de tempo, para que haja superávit no setor público é preciso que haja um déficit equivalente no setor privado (supondo que o balanço externo esteja equilibrado, para simplificar). Em outras palavras, superávits no setor público grosso modo significam perda relativa de riqueza das famílias e empresas. Enquanto que, ao contrário, déficits públicos de forma geral significam aumento relativo da riqueza das famílias e empresas situadas no Estado deficitário 2.
Isso pode parecer estranho, mas atualmente os governos que criam sua própria moeda fazem pagamentos simplesmente adicionando números às contas bancárias em computadores. Em resumo, os bancos comerciais têm contas especiais (conhecidas como reservas bancárias) nos bancos centrais. Quando o governo paga o salário de um professor ou o serviço prestado por uma empresa, o Banco Central daquele país registra o saldo na conta de reservas bancárias do banco do destinatário. Esses depósitos bancários representam a base monetária recém-criada pelo governo. O banco marca o saldo do depósito da conta bancária do destinatário no mesmo valor. O governo que cria a sua própria moeda não precisa “obter” números para poder “adicionar” números às contas bancárias. Ele não precisa, portanto, de nenhuma pilha de barras de ouro ou notas de papel que tenha coletado das pessoas antes de poder digitar esses números.3
Os governos estaduais e locais, por não serem autorizados a criarem moedas próprias, precisam coletar impostos ou contrair empréstimos para gastar. Eles também podem receber – e, de fato, recebem – fundos constitucionais e de agências do governo federal para financiar seus gastos. Mas, de forma geral, os entes subnacionais estão submetidos à mesma lógica das famílias e empresas: precisam administrar suas despesas de acordo com a evolução das suas receitas.
Já um governo nacional que cria sua própria moeda nunca pode ir à falência ou ser incapaz de pagar suas contas, desde que essas contas estejam denominadas na moeda (unidade de conta) que ele cria. Isso inclui promessas de pagamento de juros aos detentores de títulos da dívida pública, como também as promessas de pensões aos aposentados ou promessas de pagamento pelos cuidados médicos do público em geral.
Se qualquer obrigação financeira é devida em reais, por exemplo, o governo federal brasileiro sempre tem os meios financeiros para pagá-la. É preciso uma autorização do Congresso para que o Tesouro e o Banco Central façam os depósitos, mas o ponto é que está sempre nas mãos do governo a capacidade de realizar tais pagamentos.
Agora, se um país não tem os recursos reais de que necessita, como petróleo ou uma vacina que precisa ser importada, pode não ser capaz de usar sua própria moeda para pagar por essas necessidades, pois tais recursos podem não estar disponíveis para venda na moeda daquele país. Nestes casos, o governo precisa de moedas estrangeiras, geralmente obtidas por meio da exportação de bens e serviços. Assim como uma nação desprovida de petróleo não é capaz de fazer o óleo brotar do chão simplesmente criando moeda, existem diversas outras restrições do mundo real que precisam ser consideradas antes de se decidir por determinado gasto público.
Para esclarecer este ponto, Wray (2015) sugere supormos que um governo monetariamente soberano decida contratar mil cientistas de foguetes para uma expedição a Plutão. A primeira consideração a ser feita é se existem mil cientistas de foguetes disponíveis para contratação com as habilidades necessárias. Como governos enfrentam restrições de diversas naturezas, é preciso saber se a infraestrutura, a tecnologia e o conhecimento existentes estão à altura da tarefa de atingir as metas do programa. Supondo que essas condições sejam atendidas, é preciso analisar o “custo de oportunidade” de contratar os mil cientistas para a expedição a Plutão. Isto é, avaliar as alternativas disponíveis para o uso dos mesmos recursos.
Caso os mil cientistas de foguetes estejam desempregados, o custo de oportunidade de contratá-los para a expedição a Plutão será próximo de zero. No entanto, é provável que muitos já estejam trabalhando, seja no setor privado ou em outros projetos governamentais. Uma vez que o governo monetariamente soberano não enfrenta uma restrição financeira como os agentes privados, ele poderá vencer uma guerra de preços contra os empregadores privados se assim desejar. Neste caso, o salário dos cientistas de foguetes poderá aumentar tanto que o setor privado precisará buscar trabalhadores com outras credenciais, ou empresas privadas serão fechadas. Os impactos no setor privado poderão ser complexos – provavelmente levando a salários mais altos, custos mais altos do produto e produção menor nos setores que usam cientistas de foguetes e outros trabalhadores qualificados que possam substituí-los. No mínimo, a Missão Plutão poderia levar a gargalos (escassez relativa de recursos-chave) e alguns aumentos de preços. Logo, a política pública deve considerar o custo de oportunidade de contratar cientistas de foguetes, afastando-os de outros empregos.
Além disso, se o novo programa do governo for amplo o suficiente, outros salários e preços podem ser aumentados em decorrência dos efeitos de repercussão. Na ausência de mecanismos de racionamento e/ou controle de salários e preços, isso pode levar a uma inflação generalizada de preços e salários. Ao mesmo tempo, alto emprego e renda domésticos podem – em algumas circunstâncias – levar a um déficit comercial (na medida em que a demanda interna por importações aumenta em relação à demanda externa por exportações). Isso pode pressionar as taxas de câmbio (embora a correlação entre déficits comerciais e a depreciação da taxa de câmbio esteja longe de ser certa).
Portanto, embora em termos estritamente financeiros o governo monetariamente soberano sempre possa gastar mais na moeda que ele mesmo cria, é preciso ponderar os possíveis impactos nos preços e na taxa de câmbio, bem como as consequências em termos de retirada de recursos de outros (talvez mais desejáveis) usos.
Daí a importância do planejamento governamental de médio e longo prazo como orientador maior da definição dos montantes de recursos que os orçamentos públicos destinarão para cada atividade. Isto é, embora do ponto de vista financeiro o governo monetariamente soberano sempre possa gastar mais na moeda que ele mesmo cria, isso não significa que todo e qualquer gasto público seja desejável. Orçamentos feitos de maneira inercial, por exemplo, que se limitem a projetar para o futuro os gastos passados de cada unidade orçamentária, impedem na prática a efetivação de mudanças estruturais.
Evidentemente, planejar de forma criteriosa e transparente a alocação dos recursos públicos é mais trabalhoso do que a prática corrente de: i. estabelecer um teto arbitrário para os gastos públicos de determinado poder/ órgão, com base no argumento falacioso de que gastos maiores necessariamente provocariam inflação e/ou ineficiência; ii. deixar a critério de cada órgão a maneira pela qual serão distribuídas as dotações orçamentárias destinadas a cada unidade administrativa, sabotando na prática as transformações estruturais pretendidas pelo planejamento de médio e longo prazo; iii. controlar o fluxo de liberação dos recursos com base na evolução da arrecadação tributária, como se o governo monetariamente soberano dependesse da arrecadação prévia para gastar; e iv. responsabilizar os executores das políticas públicas pela (má) qualidade das suas despesas, como se as normas e as práticas disfuncionais de controle orçamentário e financeiro não influenciassem a eficiência, a eficácia e a efetividade do gasto público.
Como cada nação tem suas dinâmicas políticas e institucionais próprias, não há uma receita detalhada para romper com esse círculo vicioso que possa ser aplicada em qualquer contexto. Pode-se afirmar, no entanto, que o alinhamento estratégico das ações governamentais tende a ser mais efetivo quando há uma determinação política forte o suficiente para impor uma agenda transformadora, que seja capaz de romper com a inércia e tirar da zona de conforto os atores com poder de decisão nos assuntos orçamentários e financeiros. Em situações de guerra convencional, oportunidades se abrem para que isso ocorra. O mesmo se aplica em situações de comoção nacional/internacional, como no caso da pandemia do novo coronavírus. Regras fiscais de uma hora para outra são flexibilizadas e o dinheiro que supostamente não existia de repente aparece, sem que isso resulte em descontrole da inflação e/ou gastos necessariamente ineficientes.
Desemprego como inimigo a ser combatido
O leitor que nos acompanhou até aqui talvez esteja se perguntando se eventos extremos como guerras, desastres naturais e pandemias globais são condições necessárias para que haja uma determinação política forte o suficiente para promover o alinhamento estratégico das ações governamentais. De fato, situações excepcionais como essas costumam estabelecer um poderoso senso de urgência e de coesão social em torno de uma causa comum. No entanto, essa mesma lógica de “economia de guerra” pode perfeitamente ser aplicada por coalisões políticas que elejam o desemprego como principal inimigo a ser combatido. Do ponto de vista técnico, a solução é relativamente simples; do ponto de vista político, nem tanto.
Começando pelas questões técnicas, o desafio é demonstrar como erradicar o desemprego sem perder o controle da inflação. Por incrível que pareça, ainda hoje há quem imagine que esses dois objetivos sejam concorrentes. Não são! Governos monetariamente soberanos são plenamente capazes de organizar seus gastos de forma a erradicar o desemprego involuntário nos limites do seu território, caso a política macroeconômica seja conduzida com esse propósito.
Wray (2003) sistematiza os aprendizados com experiências dessa natureza desde a Grande Depressão que seguiu a crise financeira mundial de 1929. O caso clássico de atuação do governo como empregador de última instância é o Works Progress Administration (WPA), implementado nos EUA na década de 1930. Os trabalhadores da WPA construíram ou reconstruíram 617 mil milhas de rodovias, 124 mil pontes e viadutos e 120 mil edifícios públicos; construíram milhares de novos parques, playgrounds e campos desportivos; drenaram pântanos maláricos e exterminaram ratos em cortiços; organizaram escolas de enfermagem e ensinaram adultos analfabetos a ler e escrever; atores desempregados levantaram teatros ao longo do país, muitas vezes apresentando-se em cidades remotas e áreas do interior; orquestras deram 6 mil concertos ao vivo; artistas produziram murais, esculturas e pinturas etc. (WRAY, 2003, p.167)
Evidentemente, a WPA precisa ser entendida como uma iniciativa importante dentro do contexto mais amplo de gastos governamentais em apoio ao fortalecimento da indústria de defesa estado-unidense e demais atividades produtivas que lhe dão suporte e/ou por ela são impulsionadas. Como vimos na primeira seção deste artigo, essa preocupação esteve presente desde o nascimento dos EUA como nação independente. Nações que pretendam perseguir altos níveis de emprego, sem inserir tal objetivo em uma estratégia geopolítica mais ampla, tendem a apresentar resultados menos efetivos.
Mas o ponto que se quer ressaltar aqui é que os governos monetariamente soberanos são plenamente capazes de conciliar o desemprego zero com o controle da inflação. Dito de outra forma, os governos monetariamente soberanos são capazes de garantir emprego, se assim desejarem, a todos que estejam dispostos, desejosos e aptos para trabalhar em troca do salário mínimo pago pelo governo na moeda que ele mesmo cria. Somente aqueles que não quiserem (ou não estiverem aptos para) trabalhar ao salário mínimo vigente seriam deixados sem trabalho (e estes já não são computados normalmente como desempregados). Ao atuar como empregador de última instância, o governo monetariamente soberano estabelece uma âncora de preço que passa a ser o lastro de fato da moeda.
Para exemplificar, digamos que o governo federal brasileiro crie um programa do tipo empregador de última instância que pague R$ 10,00 por hora trabalhada. Poderia ser definido um limite máximo de R$ 1.000,00 de salário por mês por cada trabalhador que aceitasse aderir ao programa. Esse seria o valor recebido por quem trabalhasse em média cinco horas por dia, durante cinco dias da semana, totalizando 100 horas por mês. Digamos que 12 milhões de brasileiros aderissem ao programa no seu primeiro ano de implementação. Neste caso, a despesa máxima do Tesouro nacional com o programa seria de R$ 144 bilhões por ano. Despesas adicionais relativas à gestão e à aquisição de insumos eventualmente necessários ficariam a cargo dos governos locais e de entidades do terceiro setor que se disponham a ser parceiras do programa.
Em momentos de maior dinamismo da economia, a tendência seria o Tesouro nacional despender menos recursos anuais com o programa, já que boa parte dos indivíduos encontrariam oportunidades de trabalho com maiores salários e/ou melhores benefícios. Já nos momentos de recessão econômica a demanda pelo programa poderia aumentar, elevando a necessidade de desembolso do Tesouro nacional. No entanto, esse gasto adicional com o programa seria incapaz de provocar inflação de demanda em um momento de recessão econômica. Pelo contrário: a injeção de renda diretamente na conta dos mais necessitados possibilitaria manter o dinamismo da economia popular, o que ajuda a viabilizar especialmente os pequenos e médios negócios locais.
Do ponto de vista da sustentabilidade fiscal e do controle da inflação, um programa deste tipo proporcionará inegáveis benefícios no médio e no longo prazo. Em relação à sustentabilidade fiscal, é preciso ter claro que o programa empregador de última instância é concebido para aumentar os gastos públicos apenas até o ponto em que todo o desemprego involuntário seja eliminado.
No exemplo acima, a despesa estimada da União com a implementação do programa seria de R$ 144 bilhões por ano. Apenas para termos noção de ordens de grandeza, vale lembrar que a Lei Orçamentária da União para 2020 estima despesas de R$ 415 bilhões com juros e encargos da dívida e outros R$ 330 bilhões com gastos tributários 4. Há que se considerar ainda que: i. a criação do programa incorporaria a totalidade das despesas anuais da União com seguro desemprego (estimadas em R$ 40,6 bilhões no orçamento de 2020) e possibilitaria reduzir um montante difícil de estimar (mas certamente relevante) das despesas anuais em áreas como saúde, assistência social e segurança pública; e ii. o pleno emprego contribuirá para o fortalecimento do mercado interno, a geração de empregos indiretos, a dinamização da economia e, consequentemente, o aumento da arrecadação tributária, assegurando a sustentabilidade fiscal no médio e no longo prazo.
Em relação à inflação, existem duas questões relevantes. A primeira é saber se o pleno emprego aumentará a demanda agregada a ponto de se seguir uma aceleração da inflação de demanda. Sobre esse ponto, à medida que o programa empregador de última instância for implementado, alguns dos 12 milhões de desempregados passarão a ter renda e isso aumentará a demanda agregada, o que por sua vez viabilizará a geração de novos empregos privados, o que também aumentará a demanda agregada. Isso é verdade; e é justamente isso que se espera! Para evitar que esse aumento da demanda se traduza em aumento da inflação, dois cuidados são fundamentais. O primeiro consiste em estabilizar os gastos públicos quando for alcançado o nível de pleno emprego. É a partir desse ponto que a ampliação dos gastos públicos pode resultar em inflação de demanda. O segundo cuidado é assegurar que a oferta de bens e serviços também aumente na mesma proporção da demanda. Isso significa dizer que os pequenos, os médios e os grandes empreendedores precisam contar com um ambiente favorável à expansão dos seus negócios, o que inclui acesso ao crédito em condições civilizadas, taxa de câmbio competitiva, investimentos em infraestrutura, sistema tributário onerando mais o patrimônio e a renda do que a produção e o consumo etc.
A segunda questão relevante é saber se o pleno emprego provocará um aumento de salários nos empregos privados a ponto de levar a uma aceleração da inflação de custos. Sobre isso, há que se considerar que o aumento das escalas de produção geralmente possibilita ganhos de produtividade que podem ser apropriados tanto pelos empregadores quanto pelos empregados. Claro que isso varia de acordo com a correlação de forças e as especificidades de cada setor, mas o ponto é que aumentos salariais contribuem para o fortalecimento do mercado interno, permitindo aos empregadores privados aumentarem seus lucros com o aumento de suas vendas.
Ainda assim, é preciso atentar para que os aumentos salariais não sejam tão grandes a ponto de inviabilizarem os pequenos e médios negócios que pagam salários próximos ao salário mínimo legalmente vigente. Pode-se argumentar que R$ 1.000,00 por mês, para jornadas de 25 horas semanais, é um valor muito baixo. De fato é! Mas vale lembrar que o salário mínimo legalmente estabelecido no Brasil está em R$ 1.045,00 por mês, para jornadas de até 44 horas semanais. E, mesmo assim, o Brasil tem atualmente cerca de 12 milhões de desempregados, o que faz com que o salário mínimo de fato seja zero, pois parcela considerável da população não encontra oportunidades de trabalho mesmo em troca de uma remuneração tão baixa.
Embora o Tesouro nacional tenha plenas condições financeiras de instituir um programa empregador de última instância com remuneração maior (R$ 15,00 por hora trabalhada, por exemplo), neste caso os pequenos e médios empregadores poderiam ter uma dificuldade maior para oferecerem salários e/ou benefícios mais atrativos para seus empregados. Para evitar que isso ocorra, uma alternativa razoável é definir que a remuneração do programa será aumentada em uma segunda etapa da sua implementação (por exemplo, cinco anos após o seu início), de forma que: a) os empregadores da iniciativa privada tenham tempo hábil para adaptarem seus fluxos de caixa (evitando demitir parte dos seus empregados e/ou repassar para o consumidor final eventual aumento do seu custo com salários); e b) as questões administrativas/gerenciais relativas ao programa possam ser conduzidas de forma estruturada (evitando uma procura muito grande pelo programa nos primeiros anos de implementação, quando estarão sendo realizadas e aperfeiçoadas as parcerias com os governos locais e as entidades do terceiro setor).
Havendo esse cuidado, não há porque temer que o pleno emprego resulte em uma inflação de custos descontrolada. O máximo que pode acontecer é uma saudável mudança na qualidade dos empregos de menor remuneração, com algumas tarefas mais braçais sendo gradativamente substituídas por máquinas e outros avanços tecnológicos. É isso o que vem ocorrendo ao longo do tempo nos países hoje considerados desenvolvidos. E, como sabemos, isso não resultou em descontrole da inflação, seja ela de custos ou de demanda.
Certamente ainda haverá muitos indivíduos que continuarão desempregados voluntariamente: haverá os que não estão querendo trabalhar para o governo (talvez por qualquer salário); os que não estão querendo trabalhar pelo salário anunciado pelo governo; os que estão entre empregos; os que irão preferir procurar um emprego melhor enquanto estão desempregados etc. Em contrapartida, todos que estejam dispostos, desejosos e aptos para aderir ao programa ao salário anunciado pelo governo encontrariam uma forma digna de viver até encontrar oportunidade melhor de trabalho.
Um programa dessa natureza não resolverá sozinho todos os problemas de emprego, desemprego, subemprego, baixa qualificação e desigualdades de renda e de acesso a serviços em geral. Outras políticas sociais e econômicas continuarão sendo necessárias para viabilizar a construção de uma sociedade mais próspera e inclusiva. Mas ao chamar para si a responsabilidade de garantir uma vida digna para todos que tenham condições físicas e disposição de trabalhar, o governo monetariamente soberano estará agindo de forma estruturada em relação ao principal desafio das sociedades contemporâneas: erradicar o desemprego. Isso vale tanto para as questões materiais mais óbvias (relacionadas à segurança alimentar, por exemplo), quanto para questões mais sutis, como as relacionadas à autoestima e ao sentimento de pertencimento comunitário.
Acontece que o maior obstáculo para que se alcance o pleno emprego não é de natureza técnica, e sim política. Kalecki (1942) trata desse aspecto com observações que permanecem válidas quase um século depois.
Nas economias capitalistas, é comum vermos líderes empresariais alegando que o nível de emprego depende do chamado estado de confiança. Trata-se de uma forma pouco sutil de tentar influenciar a política governa- mental: tudo o que pode abalar o tal estado de confiança deve ser evitado porque isso supostamente causaria uma crise econômica. Este controle perde a sua eficácia, no entanto, diante de governos que se disponham a promover o pleno emprego por meio dos gastos públicos. Para evitar que isso ocorra, alega-se que a elevação dos gastos públicos resultará necessariamente em descontrole da inflação, o que, como vimos ao longo deste artigo, é uma falácia desprovida de fundamentos teóricos e empíricos.
Kalecki alerta que há, no entanto, um motivo muito concreto para que essa falácia seja socialmente naturalizada: sob um regime de pleno emprego permanente, a demissão deixa de desempenhar o seu papel enquanto “medida disciplinar”. Ainda que no regime de pleno emprego a tendência seja o aumento dos lucros das empresas, não são poucos os que preferem preservar o status social que o poder de demitir proporciona. Afinal, no regime de pleno emprego a autoconfiança dos trabalhadores tende a crescer, o que não é visto com bons olhos por alguns empregadores privados.
Toda sociedade tem os seus que acreditam ser desejável certo nível de desemprego para “colocar cada um no seu lugar”. Dado que não é muito simpático assumir tal pensamento publicamente, essa visão de mundo costuma ser escamoteada por meio de ameaças mais ou menos veladas sobre os supostos riscos de descontrole da inflação e das contas públicas que estariam associados ao regime de pleno emprego.
Considerações finais
Como discutido ao longo deste artigo, as grandes potências se desenvolveram tendo como principal referência os gastos públicos mobilizados para os esforços de guerra, sejam elas reais ou potenciais. A visão dominante sobre gasto público, até hoje referenciada na anacrônica Teoria Quantitativa da Moeda, é incapaz de reconhecer isso. Quando substituímos a visão dominante por abordagens referenciadas na trajetória histórica de cada nação, somos forçados a reconhecer o papel fundamental dos Estados nacionais como agentes de promoção do desenvolvimento, tanto em tempos de guerra como em tempos de paz. Vimos neste artigo que os governos que criam a sua própria moeda não dependem da arrecadação tributária para efetivar seus gastos. Isso é um tanto óbvio, pois enquanto o emissor da moeda não toma a iniciativa de gastar, as famílias e empresas não têm como obter a moeda necessária para o pagamento de tributos.
Quando entendemos como gastam os governos que criam a sua própria moeda, não é difícil perceber que cabe a eles zelar para que as economias nacionais operem com pleno emprego da sua capacidade produtiva. Conter o gasto público para evitar inflação de demanda só faz sentido em economias que estejam em situação de pleno emprego. Isso não significa, no entanto, que todo e qualquer gasto seja sempre desejável. Planejar de forma criteriosa e transparente a alocação dos recursos públicos é condição necessária para oferecer serviços públicos eficientes, eficazes e efetivos. O que se procurou enfatizar neste artigo é justamente a importância de substituirmos falácias do tipo “o dinheiro acabou” por análises criteriosas sobre como aperfeiçoar a qualidade dos gastos públicos.
Naturalmente, tratar o assunto dessa maneira pode incomodar atores com poder de decisão nos assuntos orçamentários e financeiros. Afinal, para muitos desses atores é mais cômodo manter a dinâmica tradicional de:
i. estabelecer um teto arbitrário para os gastos públicos de determinado poder/órgão; ii. deixar a critério de cada órgão a maneira pela qual serão distribuídas as dotações orçamentárias destinadas a cada unidade administrativa; iii. controlar o fluxo de liberação dos recursos com base na evolução da arrecadação tributária; e iv. responsabilizar os executores das políticas públicas pela (má) qualidade das suas despesas, como se as normas e as práticas disfuncionais de controle orçamentário e financeiro não influenciassem a eficiência, a eficácia e a efetividade do gasto público.
No entanto, os limites auto impostos sobre os gastos públicos tendem a ser superados com certa facilidade quando há uma determinação política forte o suficiente para tanto. É o que ocorre em situações de guerras convencionais ou de calamidades públicas, como a atual pandemia. Nestas situações, mesmo os adeptos (conscientes ou inconscientes) da Teoria Quantitativa da Moeda transmutam-se rapidamente em entusiastas “keynesianos”, ao menos até que a situação econômica volte à “normalidade”.
Há que se perguntar, no entanto, se é normal um país como o Brasil, por exemplo, com todo o seu potencial, ter 12 milhões de desempregados e outros 40 milhões de subempregados. Do ponto de vista técnico, não há nada de normal nisso. É perfeitamente possível e desejável que os governos monetariamente soberanos trabalhem para que suas economias operem em regime de pleno emprego. O principal obstáculo para que isso ocorra é de natureza política. Afinal, sob um regime de pleno emprego, a demissão deixa de desempenhar o seu papel enquanto “medida disciplinar”.
Para superar essas resistências, sugeriu-se neste artigo que a lógica da “economia de guerra” seja acionada tendo como mote o combate ao desemprego. Não se trata de abrir mão do necessário zelo quanto à segurança nacional. Muito pelo contrário! Como ficou mais uma vez evidente durante a pandemia em curso, diante de situações críticas as grandes potências não hesitam em usar seu poderio militar e econômico para modelar os fluxos produtivos e comerciais de acordo com as suas próprias necessidades de sobrevivência. É a mobilização permanente para as guerras (existentes e potenciais) que permite a essas potências a coesão política necessária para legitimar determinadas decisões de gasto e outras formas de indução econômica. Apenas ressaltou-se que, na ausência de guerras convencionais e calamidades públicas clássicas, a erradicação do desemprego involuntário deve ser considerada uma justificativa suficiente para orientar as decisões de gasto público.
Notas:
1 Aos leitores não familiarizados com essa discussão, sugiro os trabalhos de Resende (2017), Mollo (2020) e Conceição (2020) como referências para maiores aprofundamentos.
2 Dívida pública bruta das maiores economias mundiais (% PIB, em março de 2020): Japão (238%), Itália (135%), EUA (107%), França (98%), Canadá (90%), Inglaterra (80%), Brasil (75%), Índia (69%), Alemanha (61%) e China (50%). Diante das necessidades impostas pela pandemia do novo coronavírus, a tendência no futuro próximo é que haja algum aumento da relação dívida/PIB nesses países. No entanto, com taxas básicas de juros próximas de zero, o aumento na relação dívida/PIB tende a ser moderado. Taxas básicas de juros anuais (em março de 2020): Japão (-0,1%), EUA (0%), Zona do Euro (0%), Inglaterra (0,25%), Canadá (1,25%), China (3,15%), Brasil (3,75%) e Índia (5,15%).
3 Para uma explicação precisa e de fácil compreensão sobre a dinâmica de funcionamento dos gastos públicos realizados por governos que criam sua própria moeda, ver o “Guia para Iniciantes”, disponível em: www.mmtbrasil.com. Para maior aprofunda- mento, ver os trabalhos de Wray (2003, 2015, 2019).
4 De acordo com a Receita Federal do Brasil: “Gastos tributários são gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando a atender objetivos econômicos e sociais e constituem-se em uma exceção ao Sistema Tributário de Referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte”. Disponível em: http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/demonstrativos-dos-gastos-tributarios/conceito-de-gasto-tributario.
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OBS:
Texto originalmente publicado na Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento – RBPO, Brasília • Volume 10, nº 1, 2020 • pgs 5 – 25 • www.assecor.org.br/rbpo 25
*Márcio Gimene é Analista de Planejamento e Orçamento do Governo Federal, em exercício no Ministério da Economia. Economista pela UFRJ, mestre em Geografia pela UnB e doutor em Geografia pela UFRJ
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 14/05/2020
Edição: Ana A. Alencar