Não confundam Brexit com “sair à francesa”…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
“VOLTAMOS À ERA MEDIEVAL… e o Islã continua a ser o pivô da desagregação!” – dizem alguns “analistas”, surpreendidos com a decisão da Inglaterra voltar a ser Grã Bretanha, antes de ser Europa.
Mas… a coisa não é assim tão terrível. Há uma explicação histórica para o que ocorreu no plebiscito que decidiu a saída da Inglaterra do bloco da União Europeia.
Ingleses sempre foram individualistas e arrogantes. Nunca toleraram conviver com franceses e muito menos o fariam em um bloco liderado por alemães. Afinal, o império sempre foi voltado para fora do continente europeu, para o mar e alhures…
Jamais se misturaram dentro da União Europeia e não sairiam dela “à francesa”…
Essa explicação seria suficiente, não carregasse, em si, todo um processo milenar de consolidação civilizatória que, ao que tudo indica, é mesmo cíclico.
De Heródoto, o pai da história, a Toynbee, o grande historiador do século 20, aprendemos que a humanidade submete-se a grandes ciclos, que historicamente seguem um padrão, como se a trajetória das sociedades ao longo das eras fosse uma mola, uma grande espiral. Aprendemos também que vários ciclos expressam a repetição de fórmulas de poder, estratégias de governança e aspirações hegemonistas, em parábolas de “ascensão e queda”, em patamares evolutivos ascendentes e cada vez mais complexos, seja nos grandes quadros das civilizações, seja no micro-cosmos das sociedades políticas locais ou regionais.
Há uma certa “psiqué” coletiva nisso tudo. Algo atávico, que Carl Jung classificaria como o subconsciente coletivo, a determinar a condução obsessiva das sociedades ao paraíso iluminado ou ao ralo escuro da barbárie.
Assim ocorre na história da Europa, com a ascensão e queda do Império Romano, a consolidação do monoteísmo judaico e a evolução das duas grandes correntes religiosas ocidentais, do oriente ao ocidente e, em seguida, em direção ao oriente: o cristianismo e o islamismo.
A queda do império romano do ocidente, no Século IV d.C., induziu ao isolacionismo dos senhores e seus servos, protegidos, em fuga das cidades para o campo, temerosos das invasões bárbaras germânicas e, depois, da expansão violenta do islamismo, pela ação dos invasores árabes e turcos.
Foi assim que surgiu a descentralização do poder territorial em feudos, a estrutura social estamental, o modelo de mobilização bélica por meio da suserania e vassalagem, e o poder moral do clero – suportados por uma economia rural – baseada na agricultura de subsistência e no comércio limitado a formas de escambo – desprovida de regime monetário padronizado.
Ilhada, em uma das pontas de todo esse processo histórico, sempre esteve a Inglaterra… a Bretanha povoada pelos bretões, conquistada pelos Romanos, pressionada pelos picts, invadida pelos saxões, conquistada pelos normandos e ameaçada pelos espanhóis. A Inglaterra que derramou o sangue de sua mais pura nobreza e seus mais bravos plebeus nas cruzadas contra o Islã para, ao final, romper com a igreja e se isolar em sua própria organização religiosa…
Esse isolacionismo consolidou no britânico a cultura de não pedir, tomar, não esperar, conquistar, jamais unir e, sim, aliar.
Preservar a identidade britânica é a razão cultural da Inglaterra. Foi assim que, terminada a idade média, o reino que se diz sempre unido despontou na vanguarda do mercantilismo e da revolução industrial, conquistou povos e terras por todo o globo terrestre, enfrentou a Espanha, a França e a Alemanha, uma em cada século, para se consolidar como uma das mais estáveis economias do mundo, com moeda das mais valorizadas no câmbio e a proteção incondicional da maior potência da história – sua ex-colônia norte americana.
A Europa também sofreu enorme transformação nos dois últimos séculos.
Após a revolução industrial, a Europa conheceu a abolição do antigo regime, a consolidação das nações, a queda dos grandes impérios, as revoluções, a desarmonia no “concerto das nações” e o neo-imperialismo no Século XIX. Também sofreu com o embate entre regimes totalitários e destes com as sociedades democráticas, duas guerras “quentes” contra o expansionismo alemão e uma guerra “fria” contra o expansionismo soviético, que a dividiu praticamente ao meio, no século XX.
A resposta continental a todo esse processo foi a União Europeia, organização iniciada em 1957.
A UE traduzia o resgate civilizatório e econômico propugnado pelo helenismo e pelo grande império romano; também propugnado pelo império Romano-Germânico, Austro-Húngaro e também Britânico (onde o sol não se punha). Como uma Janus, a UE expressava também o espectro sinistro dos sonhos de Napoleão, Stalin, Hitler e Mussolini.
Um sonho sempre visto de forma cética pelo Reino Unido.
A vida, porém, é um somatório de parábolas.
Após a turbulência dos anos 60, a Inglaterra, relutantemente, aceitou ingressar no clube, em 1973- porém, sem abrir mão de sua moeda, a Libra Esterlina…
Ocorre que ameaça muçulmana se fazia, já nesta época, de novo, presente. Nos anos 70 e 80 do Século XX, os árabes muçulmanos impactaram a Europa por meio do terror-afirmativo palestino e pela crise do boicote de fornecimento do petróleo. De fato, no período, os árabes invadiram a combalida ilha britânica com milhões de petrodólares. Mesmo assim, o sinal amarelo acendeu… e assim permaneceu.
Nas últimas quase três décadas, porém, os lucros foram sendo substituídos pelo prejuízo provocado pelo terror religioso implacável, os gastos militares com duas guerras e longos períodos de ocupação nos países conflagrados (Afeganistão e Iraque) e as hordas de refugiados da barbárie islâmica.
A Russia, o antigo vilão oriental, também se faz ameaçadoramente presente no campo da energia e nos conflitos de autonomia nas franjas do continente.
Também, como antes, mas em estilo completamente diferente, o novo “império germânico” se apresenta como o suserano da União Europeia, cujo sotaque francês é evidenciado na sede Belga da organização e no regime monetário ditado pelo governo francês…
Não se trata mais de um feudalismo – porém há suserania e vassalagem econômica.
A invasão bárbara não é propriamente militar, mas se faz presente na crise humanitária dos refugiados. A agressão muçulmana ao mundo livre ocorre nas ruas, na excessiva tolerância aos intolerantes – incluso em Londres. O terror substitui as tropas regulares e injuriam a cultura civilizatória europeia.
O ambiente da União Europeia deixou de atrair o espírito britânico, que, ademais, dele nunca se enamorou.
Hora, portanto, do reino britânico subir as velas de sua nau e… apontar a proa em direção à ilha…
O casamento acabou sem que houvesse alguma vez surgido o amor…
A Inglaterra, é certo, irá enfrentar dias difíceis. Assume o risco de perder a Escócia e não mais conseguir administrar a crise com a Irlanda. No entanto, continuará parceira dos Estados Unidos, aberta à visitação e ao capital de todo o mundo e… mais britânica que nunca. Talvez mais xenófoba e arrogante.
O Reino Unido é vasto e múltiplo. Possui uma forte indústria de base, de bens e serviços. Concentra, por outro lado, grande inteligência agregada em instituições de ensino, pesquisa, organizações não governamentais, institutos centenários e modernas empresas que fazem do conhecimento seu core business. A capacidade de atração de talentos, pela Inglaterra, continua a ser incomparável, inclusive em relação aos EUA. Por fim, a tradição militar permanecerá intocável.
Terá a Inglaterra, assim, cumprido mais um ciclo em sua história, e na história da civilização europeia. Afinal, o império sempre foi voltado para fora do continente europeu, para o mar e alhures…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo – OAB/SP. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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