Por João Gaspar Rodrigues*
Muitos ambientalistas alimentam a visão idílica de que a preservação da Amazônia pressupõe, inevitavelmente, um isolamento geográfico, social e cultural. Em deixar as coisas como estão. São os nimbys, de que fala Lovelock (2006, p. 143). Acrônimo inglês de “Not In My Backyard” (Não No Meu Quintal), usado pejorativamente para designar moradores de determinada área que são contrários ao desenvolvimento da região.
Os nimbys não existem apenas no senso comum da sociedade, mas florescem com mais ímpeto na intelligentsia dos centros de ensino superior. E neste locus, os agentes obstrutivos podem ser particularmente virulentos, impedindo o surgimento de ideias disruptivas ou apenas contrárias ao pensamento dominante. E este aspecto, destacado por Lovelock (2006, p. 94), pode impedir que pesquisadores mais jovens expressem livremente suas opiniões “sem por em risco a possibilidade de obter bolsas ou publicar artigos”.
A lógica por trás dos nimbys chega a conclusões crueis, como sugere Bregman (2021, p. 297). Por exemplo, à pergunta se países deveriam mandar alimentos para a Etiópia, a resposta, seguindo a referida lógica, é: nem pensar. Mais comida quer dizer mais filhos, o que, num círculo vicioso, resulta em mais fome. Essa visão pessimista vê a superpopulação como a tragédia final e restrições ao direito de reproduzir como a solução.
O objetivo da intangibilidade ambiental é abraçado, em especial, por setores marginais e idealistas agressivos, agrupados no monismo ambiental e seu esquema único de valorização não antropocêntrica. Sentem antes de pensar, surgindo daí uma versão idealizada/romântica da história. E por isso é necessário um salto imaginativo para compreender o psiquismo que os animam.
São guiados, fundamentalmente, por um ufanismo primitivo, emocional, quase visceral, assim como antigamente, os povos eram guiados pelo credo do nacionalismo inflamado — e agressivo — de pouco alcance e de terríveis consequências históricas. Além disso, alimentam-se de uma “visão de mundo excessivamente dramática” (Rosling, 2019, p. 78).
União das pessoas pela emoção
O nacionalismo, segundo Popper (1987, p. 56), “faz apelo a nossos instintos tribais, à paixão e ao preconceito, e a nosso nostálgico desejo de ser aliviados da tensão da responsabilidade individual que ele tenta substituir por uma responsabilidade coletiva ou de grupo”. De igual modo, o ufanismo regional e provinciano une as pessoas pela emoção da massa, e esta quase sempre suprime a crítica e o debate. E tudo aquilo que elimina a crítica e o debate — elementos essenciais da democracia — tende a ser não apenas antidemocrático, mas desdemocratizante.
A intangibilidade ambiental, aludida acima, ou o desejo de um mundo natural intocado é ingênuo (Rees, 2005, p. 115). O meio ambiente que muitos prezam (principalmente os ufanistas edênicos) e com o qual sentem-se mais em sintonia é uma criação artificial, resultado de séculos de cultivo intensivo, enriquecido por muitas plantas e árvores não nativas. Mesmo a paisagem amazônica, a curto ou médio espaço dos vilarejos, aldeias, comunidades rurais e cidades está longe de ser natural. Os indígenas vêm transformando o terreno muito antes dos colonizadores europeus chegarem: “corte e queimada” são práticas que datam pelo menos um milênio.
Ondas de extinção
A primeira onda de extinção que o planeta conheceu acompanha a disseminação dos primitivos caçadores-coletores. A segunda onda de extinção acompanhou a disseminação dos agricultores e dá uma perspectiva importante sobre a terceira onda de extinção que a atividade industrial está causando hoje. E como afirma Harari (2015, p. 83-84):
“Não acredite nos abraçadores de árvores que afirmam que nossos ancestrais viveram em harmonia com a natureza. Muito antes da Revolução Industrial o homo sapiens já era o recordista, entre todos os organismos, em levar as espécies de plantas e animais mais importantes à extinção. Temos a honra duvidosa de ser a espécie mais mortífera nos anais da biologia.”
O problema com a abordagem geral que prega a intangibilidade ambiental e o isolamento geográfico é, antes de tudo, político. Andrew Light (2002, p. 439), em ensaio seminal sobre o tema, adverte:
“Como conselho para os ambientalistas, a abordagem seria politicamente suicida. Na medida em que considerações como os benefícios de utilidade para a preservação ou o desenvolvimento são uma parte razoavelmente persistente da discussão sobre o desenvolvimento da Amazônia, adotar uma abordagem que, convenientemente, contorna essas questões, garante que os ambientalistas serão excluídos dessas discussões, ou pelo menos, facilmente ignorados. Ir à mesa de negociações armado com uma teoria que ‘torna irrelevantes as questões de benefício e satisfação humanos’, quando essas questões são necessariamente abordadas e quando os representantes desses interesses são os únicos presentes e capazes de articular tais interesses, tornaria as negociações irreversivelmente cáusticas, se não impossíveis. Negociar prioridades ambientais a partir de um ponto de vista moral irreconciliável e intratável que se opõe aos interesses humanos não é engajar-se em negociações, mas simplesmente fazer exigências a partir de uma posição moral presumidamente superior. Na medida em que é difícil para os ambientalistas, até mesmo encontrarem uma voz em um fórum onde tais decisões são tomadas, essa abordagem seria, no mínimo, ingênua e imprudente. Também vai de encontro à quantidade substancial de pesquisas realizadas sobre negociações e formulação de políticas.”
Pode-se dizer, portanto, a partir dos parâmetros lançados acima, que a prova mais autêntica para a civilização, não é o colorido dos bosques, o tamanho das cidades nem das florestas intactas e mantidas em pé (embora sejam excelentes indicadores), mas o tipo de homem ou mulher que o país produz (Kohn, 1963, p. 60).
É a partir do elemento humano cultivado e dignificado que se mede a grandeza de um povo, de um país, de uma sociedade. É este ser humano digno e tratado com dignidade que será o futuro ambientalista consciente, entusiástico e razoável, defensor dos recursos naturais de Gaia sem desgarrar da perspectiva humana (que de igual forma é um recurso natural).
Compromisso de preservar a natureza
O mais importante não é estabelecer e resolver debates na base da teoria de valores, exigindo atos de heroísmo ambiental, mas motivar as pessoas a agirem sobre um compromisso razoável e prático de preservar a natureza na qual encontram-se inseridas. As preocupações com moradia, emprego, saúde, educação não podem ser rejeitadas como mero “antropocentrismo” egoísta. Até porque a equação humana é tão natural quanto as florestas e os rios. A crença do ser humano como animal supranatural (Lovelock, 2006, p. 76) ou extranatural representa um falso conceito sob a perspectiva ambiental.
Não há um mundo humano e um mundo natural separados. E se, por um motivo ou outro, existiram em esferas próprias, as alterações climáticas em escala planetária encarregaram-se de destruir esses muros ilusórios. Esta pode ser a era do Antropoceno — a época geológica em que a ação humana está transformando o planeta (Gray, 2018, p. 99). Mas também é aquela em que o animal humano está menos no controle do que nunca.
A receita de renunciar à integração regional, nacional e internacional, ou aos amplos benefícios oferecidos por uma rodovia federal, não parece o caminho mais adequado para preservar a floresta amazônica, mas certamente é a rota mais curta para manter o povo amazônida afastado de conquistas ofertadas pela diversidade civilizatória.
Seria como renunciar à pesquisa científica mais moderna (robótica, engenharia genética, nanotecnologia, inteligência artificial etc.) pelos riscos que a mesma oferece à existência humana e à capacidade de remodelar o mundo, sem atentar para os benefícios e os mecanismos que a mantém nos limites razoáveis: ética, bioética etc.
Esvaziamento da Amazônia
O isolamento geográfico leva, naturalmente, a um modelo de preservação da Amazônia como um ecossistema natural, a exemplo da Antártica. Mas para admitir esse modelo de controle à moda antártica, a população residente no território amazônico (milhões de pessoas) deveria ser evacuada, pois afinal, o excesso de população com seus padrões extrativistas, consumistas e destruidores, segundo Capra e Mattei (2018, p. 27), desempenha um relevante papel na degradação ambiental.
No máximo, no santuário amazônico seriam admitidas expedições científicas de estudo. O que, sem qualquer discussão, soa como um rematado absurdo, mesmo frente à ética ambiental mais ortodoxa e menos aderente ao antropocentrismo. Uma abordagem politicamente suicida já batizada como “fascismo ambiental” (environmental fascism — Light, 2002, p. 432).
Não há como negar o valor intrínseco (ou não instrumental) e relacional do mundo natural amazônida. Esta premissa, todavia, pode ser conciliada com as noções tradicionais dos valores e dos compromissos morais humanos, o que serve para temperar e enriquecer o debate, conferindo um caráter pragmático (pragmatismo ambiental). A questão não se reduz às perguntas: Quais interesses contam mais? Os antropocêntricos ou os não antropocêntricos? A verdade como sempre está no meio: uma solução de compromisso. A gestão dos recursos pode atender ambos os interesses, sob uma “justificativa que inclua razões antropocêntricas fortes, mesmo que não se limite a essas razões” (Light, 2002, p. 440).
A concepção não antropocêntrica do valor da floresta tropical, forjada fora do Brasil e imposta, pelos canais acadêmicos, à intelligentsia local, soa como uma forma imperialista de imposição cultural. Mesmo que alguém esteja comprometido com a afirmação de que a descrição não antropocêntrica do valor natural articula o único valor verdadeiro da natureza, independente da percepção humana ou da perspectiva cultural, ainda assim, usar essa concepção de valor para justificar uma interrupção no desenvolvimento brasileiro (e amazônida, em especial) seria uma imposição geral sobre os brasileiros.
Exemplo de Chico Mendes
Se é “imperialista” forçar os brasileiros a aceitarem um cálculo de utilidade do primeiro mundo sobre o valor da floresta, que dá mais peso ao bem-estar global do que ao desenvolvimento local, então deve ser imperialista impor-lhes essa versão desenvolvida de não antropocentrismo (Light, 2002, p. 439). Afinal, não são necessariamente as formas particulares de justificação do cálculo moral que se impõem ao Brasil, mas o fato de prevalecer uma avaliação alienígena do valor da floresta tropical e não a dos nativos da Amazônia legal (que a vivem, a preservam e estão adaptados a ela).
Um dos mais famosos ambientalistas do Brasil, Chico Mendes, afirmava, de forma muito clara e explícita (Light, 2002, p. 440), que a razão de sua luta para a proteção da floresta tropical era porque tratava-se de sua casa, de seu local de trabalho, e não por algum senso abstrato do valor da floresta em si mesma.
Os ambientalistas extramuros (de fora do Brasil) e intramuros (influenciados e doutrinados por aqueles), ao pregarem a proteção da floresta, perdem de vista os verdadeiros fatores sociais e econômicos envolvidos na destruição/preservação, que, localmente, são melhor compreendidos como matéria de justiça social. Uma posição que “ignore tais evidências só pode ser considerada intencionalmente cega” (Light, 2002, p. 440).
São essas questões de justiça social (redução das desigualdades sociais e econômicas) que motivam as pessoas a agir para proteger a floresta, e não preocupações teóricas globais sobre valores antropocêntricos ou naturais. “Preocupações teóricas” que, na verdade, revelam um desejo tardio pelo bem da humanidade. Não será fácil, portanto, vender a política ambiental do “primeiro mundo” às pessoas que vivem na e da floresta. Não só pelo ilogismo intrínseco e histórico, mas pelo inafastável elemento de injustiça climática.
Relação do 1º mundo com recursos naturais
É interessante observar, embora sem o privilégio da originalidade, que os países desenvolvidos (ditos de primeiro mundo) no período correspondente à Revolução Industrial estabeleceram uma relação mecânica de extração dos bens e dos recursos naturais, tendo-os como próprios, sob o conceito dominante de propriedade como um direito individual e ainda sob a proteção do Estado. Enriquecidos, a partir desse esquema extrativista e predatório, e agora sob a ameaça existencial das mudanças climáticas extremas (por si deflagradas), convertem, à força de teorias e de doutrinas, os antigos bens dominiais (ou senhoriais) em comuns e planetários.
A riqueza derivada da exploração da natureza é privatizada, enquanto os danos ambientais que não conhecem fronteiras, são socializados e ganham extensão planetária. Ou seja, traduzindo em miúdos: durante a gastança e o processo de enriquecimento industrial, os bens naturais eram de propriedade individual/senhorial (uma riqueza de poucos), mas depositada a fatura sobre a mesa (mudanças climáticas e aquecimento global), esses mesmos bens residuais passam a ser socializados e “planetarizados” (o prejuízo de muitos).
James Lovelock (2006, p. 99), reconhece a dívida planetária do “mundo desenvolvido e mal-acostumado”, preocupado antes em estender ainda mais o tempo de vida, que de alterar seus hábitos de consumo, de comodidade e de riqueza, que afetam profundamente o planeta e a vida nele existente. E conclui o ambientalista britânico:
“A ironia disso tudo é que nós, do mundo desenvolvido, somos os principais poluidores, as pessoas mais destrutivas do planeta, e embora disponhamos do dinheiro e dos meios para impedir a Terra de transpor o limite mortal que tornará a mudança global irreversível, somos paralisados pelo medo.”
Referências
BREGMAN, Rutger. Humanidade. Uma história otimista do homem. Tradução de Claudio Carina. 5a. reimpressão. São Paulo:Planeta, 2021.
CAPRA, Fritjof.; MATTEI, Ugo. A revolução ecojurídica. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. São Paulo:Cultrix, 2018.
GRAY, John. A alma da marionete. Um breve ensaio sobre a liberdade humana. Tradução de Clóvis Marques. São Paulo:Record, 2018.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. 3a. ed. Porto Alegre:L&PM, 2015.
KOHN, Hans. A era do nacionalismo. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:Fundo de Cultura, 1963.
LIGHT, Andrew. Contemporary environmental ethics from metaethics to public philosophy. Metaphilosophy (Metaphilosophy LLC and Blackwell Publishers Ltd.), vol. 33, n. 4, July 2002, pp. 426-449.
LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Tradução de Ivo Korytowski. Rio de Janeiro:Intrínseca, 2006.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo II. Tradução de Milton Amado. São Paulo:Universidade São Paulo/Itatiaia, 1987.
REES, Martin. Hora final. Tradução de Maria Guimarães. São Paulo:Companhia das Letras, 2005.
ROSLING, Hans. Factfulness. O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. Tradução de Vitor Paolozzi. 2a. ed. Rio de Janeiro:Record, 2019.
*João Gaspar Rodrigues é promotor de Justiça.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 13/09/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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