Por Suzete Carvalho
Para Manoel, data venia
Sem pretender
Deus me livre
de poeta
dar bandeira
também me vou
pra Pasárgada
muito embora
eu não seja
amiga do rei de lá
vou levar a
a minha rede
meu violão
vou levar
vou fazer uma canção
pra dançar rir
ou chorar
mas se não adiantar
quando eu estiver
mais triste
a ponto de me matar
deito na beira do mar
mando chamar Yemanjá
para humilde lhe contar
que lhe dediquei um conto
para a homenagear.
O azul-verde do mar, em toda sua pujança, a atraía inexoravelmente. Foi entrando lentamente, olhos fixos na imensidão. O sol a pino lançava chispas ao céu, que se refletiam sobre as águas transparentes, obnubilando-lhe visão e mente, já um tanto deformadas pelo sofrimento.
Risadas soltas, brincadeiras e correrias absorviam a atenção dos frequentadores da badalada Praia da Paixão, onde a cerveja estupidamente gelada disputava primazia com a frieza humana, na alienação instituída.
A primeira onda alcançou-a aérea, a cismar, e não teve dificuldade em fazê-la perder o pé. A segunda, derrubou-a com violência. Em último laivo de sanidade, tentou firmar-se, mas o chão parecia escapulir dançando.
Fabinho foi o único a pressentir a tragédia. Desconsolado com a indiferença dos adultos, criava castelos imaginários, ocupando-se em baldear incontáveis carregamentos de areia em seu inseparável brinquedo de plástico, presente do pai: “Que é pra você lembrar do papai quando estiver na praia com a louca da sua mãe”.
Já havia vislumbrado a mulher, próxima às rochas, diferente no vestido esvoaçante e colorido como um arco-íris, admirando-se com a inusitada incursão dentro d’água, em trajes de rainha. O avô já o havia alertado para não se aproximar daquele local, porque era muito perigoso. Tinha até uma tabuleta com uma caveira. – “Cruz, credo! Será que essa é a Iemanjá?”, pensou, um tanto assustado.
Tentou afastar o pensamento, pois a mãe o proibira de acreditar nas histórias da Glorinha. – “Aquela analfabeta, vou ter uma conversinha com ela”, dissera Marina, num daqueles momentos de mau-humor cada vez mais frequentes, ao saber que a babá o deliciava com histórias de terreiro.
Mas aquela visão era muito real. Fabinho se apavorou: – “Meu Deus, acho que a Iemanjá está se afogando!” E correu: “Manhêêê…”.
Rodolfo distraía a plateia improvisada, com uma de suas eternas piadas preconceituosas, tentando envolver Marina com um indisfarçável olhar lascivo que não parecia desagradá-la, em sua perceptível carência afetiva. – “Espera um pouco, menino. Não vê que os adultos estão conversando?”
Fabinho não parava de bater os pés, impaciente. – “Acho que ele precisa fazer xixi”, obtemperou Solange, complementando com um quase inaudível: “E eu também. ‘Êta’ cara engraçado, esse Rodolfo”.
O menino explodiu em choro: – “Manhê, a Iemanjá…”. A mãe perdeu a paciência: – “Você não aprende mesmo, né? Vá procurar seu avô e só volte aqui com a cara lavada e a bexiga vazia”. E voltando-se para Rodolfo: – “Desculpa, querido, onde estávamos mesmo?”
– “Não se preocupe, criança atrapalha mesmo. Tenho um filho dessa idade, lembra?” – “Puxa, tinha me esquecido, como é que ele vai? Ainda está com a mãe?” E ele: – “Deixa pra lá, que eu não acabei de contar a piada”.
O avô abriu os braços, solícito: – “O que aconteceu, meu amor?”. Fabinho, mais tranquilo, procurou explicar o que havia visto, com a clareza que seus seis anos permitiam.
Seu Antonio, que conhecia bem a filha e sempre acreditava no neto, prontificou-se a procurar pistas sobre o inaudito acontecimento, sem antes deixar de se certificar se o neto não precisava mesmo ir ao banheiro.
Inspecionaram a orla, sem constatar nada de anormal.
O salva-vidas, preocupado com o atraso do colega que deveria rendê-lo, não tirava os olhos de Cleuza, com medo de perdê-la de vista uma vez mais. Como num passe de mágica, ela possuía o dom de desaparecer sempre que ele se livrava do trabalho.
E agora, esse velho “pentelho”, com uma história absurda. Imagine, acreditar num menino idiota, que mal saíra dos cueiros! – “Qual é, vovô? Pensa que não conheço meu trabalho? Em praia minha, ninguém se afoga.” E abriu um sorriso na direção em que deveria estar a mulata que, como sempre, havia “misteriosamente” sumido, uma vez mais. – “Maldito velho!”, resmungou.
Mas avô e neto não ouviram a imprecação, pois já haviam se afastado na direção de Marina que, por sua vez, não foi menos grosseira: – “Já vi que hoje não é meu dia!”.
Seu Antonio olhou para a filha e para Rodolfo, com olhar de entendido, o que a deixou ainda mais possessa: – “Tá legal, vocês conseguiram, vamos embora”, falou com rudeza. Mudando de tom, dirigiu-se aos amigos: – “Espero vocês hoje à noite, hein?”.
A família acordou mais tarde do que de hábito, cansada pela longa e barulhenta noite que, regada a uísque e gargalhadas, registrara sua marca em cada um.
Marina, ainda sonolenta, tentava se livrar da eterna enxaqueca, escondendo-se atrás de imensos óculos escuros. Tarde da noite, quando ela acabara de deitar, exausta, Fabinho acordara chorando, assustado com um terrível pesadelo, no qual Iemanjá lhe aparecera morta e desfigurada.
Seu Antonio, por sua vez, vagara pela casa durante boa parte da madrugada. – “Deita de uma vez, pai, parece um fantasma!” – “Vou deitar de uma vez, sim, filha, e não me acorde de manhã, que eu não vou à praia”.
Aliviada porque o pai iria ficar em casa, Marina anteviu uma manhã mais agradável com os amigos e sugeriu: “Fabinho, você também não quer ficar descansando hoje, enquanto eu vou um pouquinho à praia?”.
“Não, mãe, eu quero ir pra ver se a Iemanjá volta linda igual ontem, assim eu esqueço do sonho”. – “Então voa, que eu já estou indo”. E lá se foi irritada, batendo os saltos da sandália, com o filho em seus calcanhares.
O sol estava incandescente e as pessoas um tanto agitadas. Antes mesmo de localizar a turma, mãe e filho notaram um agrupamento à beira d’água, próximo às rochas. Aproximaram-se ansiosos, com desagradável premonição.
O salva-vidas gesticulava, pedindo que as pessoas se afastassem. Fabinho enveredou por entre as pernas dos frequentadores, olhos arregalados de horror ao notar o inconfundível arco-íris a embrulhar o corpo disforme.
– “Manhê, é a Iemanjá. Ela engordou, mas é ela. Eu avisei, eu falei pra esse moço.” – “Tira esse menino daqui, dona. Criança não pode ver essas coisas, que fica chocada e desanda a dizer besteiras.” “Dona é a sua mãe!”, gritou Marina descontrolada, quase a arrastar o filho na direção de Rodolfo, que vinha chegando.
Aproveitando a deixa, o amigo a enlaçou: – “Vou levá-la para casa, você está muito nervosa. Mais tarde podemos voltar para um aperitivo com o pessoal”. Fabinho disparou na frente: – “Eu quero contar pro meu avô. Só ele me entende”.
Mas seu Antonio já não podia ouví-lo. Fora se encontrar com Iemanjá.
– “Eu mereço!”, choramingou Marina ao chegar em casa e constatar a morte do pai. Apoiou-se no até então solícito acompanhante: – “Você me ajuda, querido?”. – “Desculpa, minha flor, mas é melhor você ligar p’ro seu ex-marido, que hoje é dia de eu ir buscar meu filho. Você entende, não é?”.
Publ.in “Nossa História, Nossos autores, Vol.II, Scortecci Editora, 2012, pág.323/326.
Suzete Carvalho, advogada, foi professora universitária , tem cerca de quatrocentas publicações, entre artigos técnico-jurídicos, crônicas, poemas, contos e ensaios sobre temas abrangentes da experiência humana, disponíveis parcialmente no blog www.novaeleusis.blogspot.com . É autora do livro “O Olhar da Caprichosa – a arte de lidar com inveja, preconceito e fenômenos afins” lançado em 2014 no Brasil, EUA e Suécia.
O seu talento entre palavras.
Obrigada, caro Ricardo. Só vi agora seu comentário, mas fico feliz que tenha gostado da matéria… Abraços!
Brilhante intertextualidade no poema é um contundente conto pra me fazer refletir que o ser humano é mesmo louco de pedra