Por Marco Aurélio Arrais
Pouca coisa me interessava mais que frequentar velórios. Morria de medo de assombração e defunto, mas a curiosidade era muita. Era saber do falecimento de alguém, conhecido ou não que, junto com a molecada, íamos ver a cara do falecido.
Quando o finado havia sido amigo da família, ia junto com minha avó, com a Mãe Nega ou uma das tias. Para isso tomava um banho caprichado e, com roupa limpa e sapatos nos pés, todo compenetrado (como mandava a educação), ia até a casa do despachado.
Mas não tinha graça nenhuma. Na presença dos parentes não se podia ficar rente ao caixão, olhando a cara do falecido. Sozinho era bem mais interessante.
Num velório bem sentido, bem chorado, tinha-se muito o que ver. O desespero da viúva, que gemia desesperadamente em todos os tons. Aqueles que, desconsiderando o momento, ficavam contando passagens da vida do morto.
Quando o morto era homem, ficava-se sabendo das safadezas praticadas, das dívidas que deixara, além dos pecados que cometera. Mas também falavam da bondade, do esforço para dar tudo de bom à esposa e aos filhos, e das saudades que iria causar. Se era mulher, eram louvados seu amor de mãe, sua bondade com os outros, seu espírito de sacrifício em prol da família. Fora um ou outro comentário, geralmente feito por outra mulher, sobre a língua venenosa e o espírito fuxiqueiro da morta.
Aprendi assim, desde menino, que em praticância pecaminosa, o homem leva uma vantagem enorme sobre a mulher.
Pode até ser impressão minha, mas naquela época os velórios tinham um cheiro diferente. Era um cheiro pegajoso, morno, que impregnava tudo.
Devia emanar do cadáver, das velas, dos cravos-de-defunto, do suor dos vivos que se amontoavam nas salas apertadas das casas humildes.
Somavam-se a isso o aroma do café coado na cozinha, o cheiro forte do fumo dos cigarros de palha, da cachaça fartamente distribuída em xícaras esmaltadas, além dos biscoitos de polvilho, fritados na gordura de porco. Na madrugada, era oferecido aos presentes que se aventuravam passar a noite, uma farta galinhada ou suã de porco com arroz, preparados em enormes tachos de cobre.
As muitas comadres, piedosamente rolavam entre os dedos as contas dos terços, numa ladainha monótona das Ave-Marias e Padre Nossos infindáveis.
À luz das poucas lamparinas, o ambiente era de tristeza e desamparo. As cadeiras, de vários modelos, eram de propriedade dos vários vizinhos, pessoas de maior amizade, que as haviam emprestado.
Com a chegada de parentes e amigos, moradores em cidades próximas, os assuntos iam sendo colocados em dia. Eram noticiados casamentos, nascimentos, batizados, doenças diversas, mudanças, além de outras mortes, até então ignoradas.
Uma coisa da qual não me esqueço era a presença das crianças. Não se escondia delas a morte. Minha geração sempre conviveu com essa realidade.
Hoje em dia, qualquer coisa causa “trauma” nas crianças, tornando-as dependentes de assistência psicológica.
Os pequenos eram levantados pelos pais ou acompanhantes até a altura dos caixões e colocados sobre uma mesa. A mesma mesa do dia a dia, onde eram servidas as refeições. Podiam, assim, despedirem-se dos pais, tios, irmãos mais novos ou mais velhos, padrinhos e avós, além dos amigos da família.
Um dos momentos mais importantes do velório, era a chegada do fotógrafo. Com sua enorme máquina de tirar retrato, cobria a cabeça com um tecido emborrachado, fotografava o defunto de inúmeros ângulos. Depois eram fotografados à cabeceira do caixão os demais parentes, a começar da viúva e dos filhos. Também uma ou outra pessoa amiga. Aquelas fotografias iam enfeitar permanentemente as paredes da sala, numa demonstração carinhosa de amor e saudade.
Observava-se, também, o cuidado na preparação dos cadáveres, que não podiam ser tratados com descuido ou desleixo.
Mulher não podia ser enterrada com batom na boca ou esmalte nas unhas. Era sinal de vaidade – um pecado muito feio diante de Deus. Não haveria missa suficiente para evitar um castigo grande, daqueles de fazer ela passar no Purgatório o dobro do tempo em que viveu na Terra.
Homem não era enterrado com os pés calçados, pois Jesus sempre andou descalço. Se aparecesse na porta do céu de sapatos, estaria querendo ser melhor que o filho de Deus, e o castigo para tal ofensa era dos mais graduados.
Já as crianças eram vestidas com camisolões brancos, e uma coroa de pequenas flores ornamentava a cabecinha dos anjos que iriam se tornar.
Mas, nem sempre a coisa corria na santa paz.
O aparecimento de uma segunda mulher com uma penca de filhos, todos sempre muito parecidos com o falecido, causava a maior confusão. Eventualmente, também apareciam um rebanho de mulheres, residentes na zona de putaria, que vinham despedir-se do amigo querido. Diante disso, a esposa escriturada em cartório tinha motivos de sobra para fazer uma espécie de “divórcio espiritual” – que a liberava de usar luto e se resguardar durante um ano de viuvez sofrida.
Cachorro é bicho danado, não pode ver ajuntamento. Deve achar que tudo é festa. Sempre aparecia no velório, acho que para filar um decomer qualquer – tirar proveito de um ossinho jogado no terreiro ou de algum prato com comida esquecido sobre um tamborete. Ficavam por ali, inzonando, cheirando as pessoas. Só que uns inventavam levantar a perna e mijar no pé da mesa onde estava o caixão. Aí entravam no cacete, para deixarem de debochamento.
Pior era quando na alta madrugada, com os poucos presentes cochilando de sono, acontecia de um gato vadio entrar na sala do velório e topar com o cachorro da casa. Aí virava um frege!
Certa feita, no velório do Zé Carroceiro, o cachorro de propriedade do defunto, e que desde o início do velório montava guarda debaixo da mesa, surpreendeu um gato que entrara na casa sem convite, desconsiderando sua autoridade de vigilante.
Insultado por aquela intromissão descabida, o cachorro da raça fila brasileiro – do tamanho de um bezerro e que atendia pelo nome de “Barão” – desceu do alto de sua nobreza e decidiu executar o defuntamento do felino. Acuou o intruso num canto da sala e este, para salvar-se, saltou no colo de uma irmã do morto, que ressonava sentada numa cadeira.
O Barão, indignado, atacou, fazendo o gato escalar os peitos da mulher. Esta, num berro só, caiu da cadeira e rolou pelo chão, chamando a atenção dos que estavam na cozinha. Ao entrarem na sala, o cachorro já havia deslocado a metade do caixão para fora da mesa, faltando pouco para derrubr o defunto no chão. O gato, dando miados que mais pareciam gritos, estava trepado na cara do falecido Zé Carroceiro, nessa altura toda mijada e arranhada pelo bicho, com o pelo arrepiado de medo…
Tirar o cachorro da sala deu o maior trabalho, pois ele não aceitava sair sem terminar o serviço, e ameaçava morder quem tentasse encostar a mão nele. Quando juntou mais gente, o gato se viu fora das vistas do cachorro e saiu saltando pelas cabeças e ombros das pessoas. Ganhando a rua, sumiu na noite.
Deve estar correndo até hoje.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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