Banalizar delação pode retirar credibilidade moral às investigações e instituir uma “grampolândia” maledicente…
“Uma coisa é maldizer, outra é acusar.
A acusação investiga o crime, define os fatos,
prova com argumento, confirma com testemunhas;
a maledicência não tem outro propósito senão a contumélia”.
Cícero
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Aberta a temporada das delações premiadas: todo mundo delata todo mundo.
Prêmios disponíveis? Tornozeleiras eletrônicas ou temporadas reduzidas em celas mais seguras, tarde de autógrafos em livrarias, devoluções parciais do butim e… sobrevida a empresas que simplesmente não deveriam mais existir no mundo dos negócios.
Nenhuma reserva moral. Absoluto desprezo para com a sociedade – vítima dos delitos, da roubalheira e, agora, da delação…
Delação virou “plano B”. O “just in case” do delator-delatado.
O caso do delator Sérgio Machado na Operação Lava-Jato, que usou gravações de conversas induzidas por ele próprio, visando “gerar” provas de delitos que poderia “delatar” perante a Força-Tarefa, mostra o risco moral e jurídico da banalização no uso da delação premiada.
O uso da “pegadinha” como forma de incriminar desavisados, como ficou demonstrado nas gravações divulgadas, carrega uma carga de imoralidade inegável.
A banalização desse tipo de expediente, transforma o Brasil em uma ridícula “grampolândia”. Nossa democracia, subjugada a manobras como as encetadas pelo colaborador Sérgio Machado, transforma nosso regime político em uma República de Delatores.
Pior ainda é a deduragem por atacado, uma evolução da delação no varejo. Verdadeira estratégia corporativa que transforma o processo criminal produto de marketing corporativo para empresas que deveriam ser riscadas do mapa…
Nesse sistema, a psicologia social se inverte e a verdade torna-se um valor dispensável.
Os impulsos, a moral e a razão
Toda questão moral envolve dilemas psicológicos.
Nascemos buscando o prazer e a satisfação sem culpas. Na primeira infância, entretanto, aprendemos com a realidade e com a convivência familiar a desenvolver nossa consciência sobre as coisas e a adquirir valores, como a lealdade, o respeito ao próximo, a solidariedade, a recompensa moral pelo que é certo e a punição pelo que se faz de errado. Esse processo, às vezes dolorido, desenvolve os freios morais necessários para a convivência em sociedade. Essa armadura torna-se mais sofisticada quando a ela se agregam os valores religiosos.
É nessa evolução que delimitamos nosso Id (nossos impulsos primários em busca do prazer), desenvolvemos o Ego (nossa razão) e consolidamos nosso superego (nossos freios e parâmetros morais).
Esse sistema é posto à prova todos os momentos de nossa vida. Sofre abalos, bombardeios, momentos de rebelião, revolta, restauração. Com a maturidade, porém, trabalhamos com mais consciência os três elementos, valorizados pela experiência.
Esse desenrolar de freios e contrapesos evolui não apenas no indivíduo, mas, também, na sociedade.
Muitas vezes, em sociedade, ocorrem antagonismos entre impulsos e desejos dos indivíduos e as exigências implementadas pela sociedade politicamente organizada. No embate, geralmente o indivíduo é sacrificado – o preço cobrado é sua renúncia à busca por certas satisfações. O indivíduo administra suas frustrações com o ego, controlando o id e “dialogando” com o superego.
Sistemas jurídicos de repressão e correção de rumos nas atividades sociais, devem sempre observar esses aspectos do mecanismo de assimilação dos indivíduos, às estruturas que lhe são impostas. No mundo atual, de valores em crise, muitos são os remédios morais implementados pela sociedade politicamente organizada, que não condizem com os valores morais aprendidos individualmente – alguns podem mesmo causar repulsa.
A indignidade intrínseca da delação premiada
No combate ao crime organizado, por exemplo, o sistema estatal de repressão demanda enorme especialização e sofisticação. Costuma tornar-se bastante invasivo e faz uso de mimetizações, visando penetrar na organização criminosa para compreendê-la e destruí-la. Os mecanismos de investigação e persecução, não raro, envolvem a superação de grandes conflitos morais.
Surge então, o risco de certos remédios “matarem o doente”, tamanha a indignidade intrínseca neles embutida.
É o caso do mecanismo da delação premiada e das escutas, que invadem a intimidade, devassam a vida pessoal, esfarelam a dignidade, destroem reputações e condenam cidadãos à execração pública por mera suspeita.
A delação premiada é um meio de obtenção de prova que consiste na oferta de benefícios pelo Estado àquele que confessar e prestar informações úteis ao esclarecimento das infrações penais praticadas pela organização criminosa à qual estaria vinculado. É também chamado de “colaboração premiada”, pois nem sempre o meio utilizado significará uma delação de comparsas e, sim, de uma estrutura ou mecanismo importante para a elucidação do crime.
A delação, por óbvio, carrega um forte estigma bíblico. De fato, Judas é o maior paradigma da delação premiada…
Já a espionagem, por meio de escutas e gravações, nos remete ao esteriótipo orwelliano do “Grande Irmão”, extraído dos episódios mais sombrios do Século XX – ligados ao câncer invasivo do Estado Policial.
Ainda que meritórios os esforços persecutórios e judiciais no sentido de combater o grande mal representado pelo terrorismo, pela corrupção governamental e pelo crime organizado, ainda assim, o rastro de vidas destruídas por mera suspeita, honras arrancadas por entendimentos parciais destacados de contextos, e, sobretudo, a licenciosidade resultante do uso contínuo de um método que antes de tudo deveria ser extremamente controlado, acaba por corroer a moral, governos, democracias, nações e até relações internacionais.
O risco da banalização do mal
De fato, não há como negar o fundo meritório de um mecanismo de investigação capaz de desmantelar esquemas sofisticados e colocar atrás das grades nomes até então improváveis (para não dizer impossíveis), em uma sociedade antes marcada pelo estigma da impunidade dos poderosos.
Há, porém, riscos provindos da “caixa de pandora” destrancada pelo acordo de delação premiada, principalmente quando ocorre a banalização do uso do remédio.
O Ministro do STJ, Gilson Dipp, no entanto, observa o risco inserido na banalização da prática da delação premiada: “Ela vem ocorrendo de forma indiscriminada e não pode ser o único meio para obtenção de provas, mas algo pontual. Daqui a pouco até ladrão de galinha fará delação”.
Com efeito, da mesma forma que a banalização pode levar à manipulação do instrumento por autoridades mal intencionadas, indivíduos delinquentes poderão também manipular o sistema, se forem periculosos e inteligentes o suficiente.
Isso é mais possível ainda quando os dilemas morais não mais integram o sistema de freios e contrapesos dos agentes envolvidos no mecanismo de delação.
Se os conflitos do ego com o superego e o id foram mal resolvidos na infância, ou sofreram profundo abalo na maturidade, o indivíduos passa a fazer da manipulação, a sua razão. Poder e Dinheiro, provam os fatos, constituem claro exemplo de causa de abalos profundos, capazes de alterar personalidades aparentemente bem formadas…
O risco envolve não apenas os elementos suspeitos, eventualmente poderosos e corruptos, como também os agentes persecutores, indubitavelmente poderosos, ainda que incorruptíveis…
A distorção dos fatos, nessa hipótese, pode levar à instituição de um sistema de poder manipulador, baseado no manejo malicioso da delação e dos grampos. Retirará qualquer benefício à dúvida e manterá todos, sem exceção, submetidos à espada de Dámocles.
Territórios controlados dessa forma têm nome: Grampolândia.
Seria o fim do regime democrático. A instituição de uma República dos Delatores.
Um péssimo exemplo de colaboração premiada
Esse contexto de risco está presente no recente episódio protagonizado pelo ex-presidente da Transpetro (subsidiária da PETROBRAS), Sérgio Machado.
Inegável a banalização dos grampos, a tentativa de negociação a qualquer preço para obtenção dos benefícios da delação premiada, a incriminação pelo abuso da confiança, etc…
Tendo negociado sua colaboração, nos termos das Leis 9.807/1999 e 12.850/2013, o delator em questão foi liberado para buscar as provas que mencionara. Adotou, assim, um comportamento similar ao de um cão farejador, em busca do osso que enterrou ou das pistas que interessariam aos seus donos. Não há qualquer ofensa na figura de comparação – no sistema de inteligência policial, desde os tempos da ditadura Vargas, chamam esse tipo de colaborador, que sai à caça dos antigos aliados, para incriminá-los, de “cachorro”…
Por conta das moralmente condenáveis, porém politicamente interessantes, divulgações seletivas, para a imprensa, do resultado da “caça” de Sérgio Machado, vieram à tona diálogos buscados pelo delator, junto a interlocutores importantes para a vida política do país, dos quais gozava ele de inteira confiança – o Ex-Presidente José Sarney, os Senadores Renan Calheiros e Roméro Jucá, dentre outros…
As gravações de Sergio Machado visaram “adequar” sua contribuição às exigências de um acordo de delação premiada – que foi homologado.
Porém, filtrados os aspectos políticos envolvidos nos diálogos, o que sobrou foi a mais absoluta e notória falta de caráter embutida no mecanismo de diálogo encetado pelo “colaborador”.
O material produzido como meio de incriminar envolvidos denota um incrível desrespeito à privacidade, ao direito de opinião, à ética e à lealdade processual. Isso poderá atingir a jurisburocracia envolvida, na medida em que a contumélia for incluída como material de uso processual…
Decididamente, um péssimo exemplo de mal uso do instituto da colaboração.
Delações por atacado
Não é um caso único. Agora, em virtude do encurralamento das corporações envolvidas nos casos de corrupção investigados, a deduragem atinge patamares de estratégia corporativa – verdadeira ação empresarial.
A confusão entre colaboração e acordo de leniência está permitindo contaminação dos procedimentos criminais pelas fórmulas de sobrevivência corporativa em tempos de crise.
Empresas que deveriam sumir do mapa – tamanho o rombo perpetrado na moralidade pública, ganham incrível sobrevida organizando estratégias de delação em massa de seus diretores e empregados graduados. Todos vão ao confessionário em busca de indulgências…
Delações estão se processando, agora, às pencas, por baciada, seguindo manuais de “compliance” e distribuição cuidadosa das verdades, de maneira que todos se “beneficiem” do mal feito delatado e, assim, rendam benefícios à empresa delinquente.
Passamos a testemunhar verdadeiros “cases” empresariais, ao invés de casos criminais…
A deduragem como estímulo à impunidade
Banalizada e mal utilizada, a delação premiada vira incentivo ao crime de corrupção e meio de vida de criminosos.
Já ocorreu algo similar no caso que resultou na prisão e cassação do governador do Distrito Federal, fato envolvendo um notório delegado de polícia envolvido em 37 processos criminais.
Dito personagem, ao delatar comparsas, ficou livre para de novo articular-se politicamente com o Governador Arruda, do DF. Foi nomeado secretário de estado e, então, nesta condição, voltou a praticar delitos, desta feita tratando de colecionar as provas de corrupção em episódios nos quais ele próprio aparecia como o distribuidor da propina…
Prestes a ser de novo preso, tratou de entregar as provas que ele próprio tratou de gravar e… continuou livre…
O método de livrar-se por meio da delação, dessa forma, vem se tornando uma espécie de “plano B” , que tem resultado na aposentadoria dos sonhos de criminosos do colarinho branco sem escrúpulos. O caso é simples: se for pego, o corrupto pode perder parte do que roubou, porém, ganhará o “direito” de permanecer preso… em sua mansão.
Nos Estados Unidos, a delação premiada concedida a um quadrilheiro ocasiona a prisão do resto da quadrilha. O acusador entra no programa de proteção a testemunhas e os acusados vão para a cadeia. Não há delações seguidas – a menos que, excepcionalmente, diga respeito a uma nova conexão que leve à prisão de um outro ramo criminoso.
No Brasil, no entanto, a Justiça garante a liberdade do delinquente delator, que sai praticamente impune do episódio, a ponto de não se dar ao trabalho de mudar de endereço nem de identidade. Pior, não prende os meliantes delatados e, quando o faz, permanece na mesma sistemática de obtenção de delações repisadas… reproduzindo impunibilidades em série, sem chegar a lugar algum.
É patente que, ao par da profunda inversão moral de valores, envolvida nessa sistemática, há algo de muito equivocado no uso do método nas operações em curso que pretendem combater a corrupção, beneficiando os corruptos com delações meia-boca, seriadas.
Com efeito, a delação premiada, no Brasil, não é preciso repisar, coloca o criminoso como principal fonte de prova – torna o corrupto o ator principal do sistema – livra-o solto e, não encarcera os denunciados – pelo contrário, concede a estes igual benefício…
Tornam os operadores dessa fábrica de deduragem, o Estado refém da delação e, ele próprio, promotor da sensação de impunidade por meio da deduragem seletiva.
Hora de corrigir os rumos
É patente que há limites morais e legais para a “busca de provas”… ainda que a busca envolva indivíduos imorais.
As divulgações na base do conta-gotas, à imprensa, não revelam apenas uma seletividade de caráter político. Elas cheiram mal… pois sugerem uma espécie de coação institucional contra os envolvidos, quase uma extorsão.
Sempre fui entusiasta da doutrina da Lei e Ordem. Porém, a exemplo do que ocorreu na Itália, passar dos limites pode por tudo a perder.
Tenho para mim que o comportamento absurdo de Sérgio Machado, poderá gerar nulidade da prova colhida.
Com efeito, “estimular” comprometimento de terceiros por meio de “pegadinhas” e “iscas” retóricas, lançadas durante um diálogo forçado pelo colaborador com a “vítima” desavisada, é similar à notória figura do “flagrante preparado” – forma moralmente desprezível de incriminar pessoas. Um meio ilegal e rejeitado pelo judiciário brasileiro.
Não será surpresa se o material for considerado inútil como meio de prova.
Comprovado o imbróglio… a investigação responsável pela “colaboração” do Sérgio Machado poderá parecer coisa dos detetives Dupont e Dupond (os atrapalhados policiais belgas, personagens dos desenhos de Tintin…).
Como disse Cícero, Senador Romano, no exórdio da defesa de Coeli: “Uma coisa é maldizer, outra é acusar. A acusação investiga o crime, define os fatos, prova com argumento, confirma com testemunhas; a maledicência não tem outro propósito senão a contumélia”.
A “Grampolândia” e a “República dos Delatores” constituem risco de contumélia institucionalizada.
Com certeza, este não é o objetivo da força tarefa do Ministério Público e Polícia Federal, do Juiz Sérgio Moro e do Ministro Teori (STF). Eles possuem estatura bem mais elevada que isso.
A Operação Lava-Jato, portanto, deve corrigir os rumos o quanto antes.
O que se busca, sobretudo, é o aperfeiçoamento institucional do Estado Democrático de Direito e do Regime Republicano brasileiro.
O alerta está dado. A luz amarela, acesa.
Para saber mais sobre delação premiada e combate à corrupção, leia:
A Corrupão Custa Caro
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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