Por Edna Uip
Pretendia a foice encontrar o que cortar. Vagou o mundo. Como foice não se contentaria com um galho ou uma flor. Talvez uma mão ou um pé. Não, não serviriam. Rasos demais. Desanimou. Foices várias vezes mudaram o rumo do mundo. Lembrou-se do que ouvira, dos feitos, das batalhas… Parou de sonhar. Viver do passado não ajudaria. Sua necessidade estava no presente. Cronos, Ceifeiro, Ceres. No mito a solução. Bastava escolher: castração, morte ou colheita.
O machado, quieto num canto, pôs-se a sorrir. Melhor ter apenas uma possibilidade do que muitas. Para ele a vida era simples. Cortava árvores. Hoje era dia de cortar uma árvore. Amanhã, outra. E todos os dias, enquanto não lhe faltasse o fio, uma árvore seria abatida.
A terra, tomada de infelicidade, desejava extinguir todas as lâminas, fossem elas das foices, dos machados, espadas, facas ou canivetes. Não suportava ver derrubados em seus solos os restos deixados por elas. Ora eram troncos, o que lhe tirava a beleza e afastava os bichos, ora era sangue que a deixava tingida e cheia de pedaços em decomposição.
Olhou-se e viu-se frágil, encarquilhada. Seca, úmida, gelada, não possuía qualquer vontade. O poder lhe fora tirado antes mesmo de nascer. Não, não podia ser verdade. Nascera antes de todos. Apenas o Divino tinha tanto poder e Ele não faria mal às suas criaturas.
Se não o Divino quem então? Ninguém! Passou a meditar. A árvore brotava de si. O metal da foice e do martelo era feito das pedras que com ela se misturavam. Ceres sempre seria aliada.
Confabulou com as florestas, as montanhas e as profundezas. Todos queriam sobrevier e, por conta do metal, viam-se arrancados e massacrados.
Uma grande rebelião foi entabulada. As árvores engrossaram seus troncos até estarem bem próximas umas das outras. Ninguém passaria entre elas. As pedras afiaram-se para cortar as mãos e os pés de quem ousasse se aproximar. Os animais, os bravos, os peçonhentos, e até os dóceis, prepararam garras e dentes para o ataque. As montanhas cobriram-se das árvores e das pedras pontiagudas e tornaram-se inexpugnáveis. Os mitos, companheiros de venturas e desventuras, postaram-se para a grande batalha. Marte, Ares e Odin foram chamados. O Dragão voluntariou-se para protegê-los.
Diante desse quadro terrível o machado perdeu o fio. E se não o tivesse perdido daria um jeito de dele se livrar. O medo lhe corroeu a madeira. A foice curvou mais um pouquinho sua lâmina, entregou-se dócil às mãos de Panoramix e tratou de instalar-se na Gália.
Cronos gostou do que viu e determinou ao tempo que mantivesse tudo assim.
E o homem que não fazia parte dessa história, voltou para a caverna e lá se escondeu até que alguém genial encontrou uma boa pedra.
Edna Uip, advogada formada pela USP e empresária, está habituada a ver o mundo pelos olhos da razão, sem no entanto, deixar de cultivar atenta observação do comportamento humano e suas emoções. Autora do romance Espelhos Quebrados (Sá Editora, 2010), é escritora, ensaísta e poeta. Colaboradora do Portal Ambiente Legal, publica regularmente na Seção Ambiente Livre.
Foto: Ingur/dasBild-artefatos de guerra engolidos pela natureza