Silvia Camossa
Aos sete anos de idade, Ana já havia descoberto as coisas da vida. Sabia que homens e mulheres usavam camisinha na hora de fazer amor e, inclusive, que a camisinha poderia furar, como de fato havia acontecido, nove meses antes dela nascer. Sabia que a moda não era namorar, mas ficar, experimentar meninos diferentes, coisa que a irmã Rosilda, dez anos mais velha que ela, muito fazia. Entendia de ficar, a danadinha da irmã Rosilda, que tudo havia lhe ensinado sobre tintura de cabelo, esmalte, limpeza de pele, massagem, lipoaspiração, malhação, menstruação, tesão, sedução e curtição. Tudo o que ela, ainda menina, não experimentava e guardava. Feito teoria. Quase surreal.
Mas havia um assunto que todos falavam e entendiam. E ela, por mais que se esforçasse, não conseguia entender: a anatomia dos seios femininos. Em linguagem popular, peitos. E por não entender, começou a observar tudo quanto era peito de mulher, de forma quase obsessiva. Mais tarde, passou a fazer anotações em um pequeno caderno, retratando o que via. Começou, obviamente, pela irmã Rosilda.
“Rosilda, 17 anos, pequenos peitos metidinhos, durinhos, empinados, bicos vermelhinhos. Tia Cleonice, 46 anos, peitos gordos, nem totalmente duros, nem totalmente moles, bicos em tom marrom, parecidos com molho de tomate à bolonhesa. Prima Carmenzinha, 13 anos, peitos pequenininhos, tímidos, quase não enxerguei. Tia Raulzita, 53 anos, grandes peitos porra loucos, o da direita virado pra esquerda, o da esquerda virado pra direita, bicos virados pra dentro. Combina com a tia Raulzita, como diz a vovó. Vovó Mirela, 87 anos, peitos mais para o umbigo, mas muito divertidos, balançam facilmente na hora de andar. Vizinha Flavia, 42 anos, peitos redondos, duros, bicos bem desenhados, tudo perfeito e com cara de mentira. Fiquei com vontade de pegar. Prima Carola, 28 anos, peitos muito semelhantes aos da vizinha Flavia, se bem que estes me pareceram reais. Autênticos. Anastácia, 39 anos, peitos depressivos, médios e caídos, bem baixo astral. Irmã Carmela, freira lá do colégio, seios escondidos. Mamãe… melhor não falar aqui da mamãe. Papai pode não gostar”.
Observou, leu, releu. Mas continuou sem entender. Concluiu apenas que os peitos femininos eram todos diferentes uns dos outros e que cada seio guardava uma porção da personalidade, do jeito, do cheiro e do mistério de cada mulher.
Um dia, em casa, zapeando uma revista de beleza da irmã Rosilda, leu uma matéria sobre cirurgia dos seios e descobriu um tal de silicone. A matéria da revista dizia que as mulheres todas estavam colocando silicone nos seios e descrevia, inclusive, as medidas do seio ideal.
Ana ficou horrorizada. A idéia de que todas as mulheres do mundo teriam os seios iguais, iguaizinhos, lhe pareceu assustadora. Para ela, isto significaria a perda da individualidade e personalidade dos peitos femininos, da originalidade e do mistério, da autenticidade e do encantamento naturais.
Se antes ela não entendia a anatomia dos seios femininos, agora ela não entendia a ideologia que fundamentava os peitos iguais e o assunto foi tomando corpo em sua mente, assustadoramente, de forma cada vez mais obsessiva. Ana dormia e acordava pensando em peitos. Um dia, comendo um sanduíche no McDonald’s , ouviu uma rápida conversa sobre os Bic Macs do mundo. Todos iguais, Fernando, todos iguais, comentou o rapaz da mesa ao lado. Você pode estar nos Estados Unidos ou na Europa, tanto faz. O Big Mac é igualzinho a esse que a gente come aqui no Brasil. Ana concluiu então que todos os seios ficariam iguais assim como todos os Big Macs eram iguais. E que esse processo nada mais era do que a tal globalização que invadia de forma soberana o mundo moderno. A globalização dos peitos, os quais, inclusive, ela ainda não tinha. Mas já sabia como deveriam ser.
À noite, na cama, aliviada mas um pouco inconformada com a imbecilidade do que havia descoberto, pensou: quando eu crescer, não vou querer que os meus seios sejam como um Big Mac. Definiu-se revolucionária : escreveu carta à mãe declarando-se opositora à globalização dos peitos e nunca mais foi ao Mac Donald’s.
Teriam, os seus seios, anatomia própria. Forma, jeito e cor que o tempo iria lhe mostrar. Isso significou para Ana fascínio e mistério inigualáveis. E ela, aos sete anos de idade, sentiu-se mulher.
Silvia Camossa é escritora e atriz. Autora dos livros “História das ideias do Zé”, “Escolhas que Brilham”, “Sonha, Zé” e “Os amigos do Balacobaco”, publicados pela Callis Editora.