Parlamentares gaúchos promovem boiadas contra o meio ambiente; gestores ignoram necessidade de prevenção e mitigação de eventos extremos
Por Micael Olegário*
As chuvas fortes e as enchentes que já afetaram mais de 1,7 milhão de pessoas no Rio Grande do Sul não são apenas resultado de um desastre natural. Ainda que os altos volumes de precipitação sejam classificados como desastres meteorológicos e as inundações como hidrológicos, a tragédia que já atingiu 431 dos 497 municípios gaúchos, possui marcas humanas evidentes e históricas. Além do contexto do fenômeno natural do El Niño – que causa chuvas mais intensas no sul do Brasil – e da geografia estadual, com diversas áreas caracterizadas como planícies de inundação, as mudanças climáticas e uma série de ações e omissões de parlamentares e gestores gaúchos mostra que o desastre também é político.
“A tragédia que assola a população e a biodiversidade do Rio Grande do Sul precisa ser encarada com seriedade, observando o cenário de crise climática no qual estamos inseridos. Fora isso, é negacionismo”, afirma nota divulgada pela Associação Gaúcha de Proteção Ambiental (Agapan). A entidade enviou ofício ao governador Eduardo Leite (PSDB) poucos dias antes das chuvas, alertando sobre o risco que as mudanças climáticas e seus efeitos representam para o RS, o que foi ignorado pelo Executivo.
Mesmo com os avisos e diante de um contexto de El Niño e do Rio Grande do Sul ter sido atingido por outros eventos extremos em 2023, o governo estadual e a Assembleia Legislativa gaúcha decidiram aprovar um orçamento com R$115 milhões – de um total R$83 bilhões – para ações climáticas, incluindo apenas R$50 mil para a Defesa Civil. Além disso, até abril, o Estado havia utilizado somente R$600 mil em ações efetivas de prevenção e mitigação da crise do clima.
O Rio Grande do Sul também é a única das unidades da federação do sul a não possuir um centro estadual de meteorologia, terceirizando o serviço à iniciativa privada, o que, de acordo com especialistas, compromete o monitoramento climático de eventos extremos, como o alto volume de chuvas.
A assistência às vítimas é o primeiro foco em um momento de tragédia, porém a frase “não é hora de procurar os culpados”, dita por Eduardo Leite, um dos gestores que tinha condições de propor políticas de prevenção e mitigação para o atual desastre, é revelador da falta de preparo dos políticos para lidar com as mudanças climáticas e seus efeitos. “Enquanto não se entender a relevância da adaptação, essas tragédias vão continuar acontecendo, cada vez piores e mais frequentes”, afirma Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
Em Porto Alegre, levantamento feito pelo UOL com dados do Portal da Transparência de Porto Alegre, mostrou que a administração do prefeito Sebastião Melo (MDB) não investiu nenhum recurso na prevenção de enchentes em 2023. Antes, a verba destinada para a mitigação desse tipo de desastre climático teve redução de R$ 1,7 milhão, em 2021, para R$ 141 mil em 2022. Além disso, conforme apurou o Matinal Jornalismo, o número de servidores do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), responsável pela manutenção do sistema contra cheias, caiu de 2.108 em 2013, para 1.072 em 2024.
Logo após as informações serem divulgadas, a prefeitura da capital gaúcha rebateu dizendo que investiu, desde 2021, R$ 592 milhões em obras de saneamento e contra cheias. No entanto, o sistema que deveria proteger Porto Alegre apresentou falhas já em novembro de 2023, quando o Guaíba atingiu 3,46m. Agora as águas chegaram a 5,33m acima do nível normal e diversas ruas e bairros, incluindo o Centro Histórico da cidade, foram inundados.
No que dependesse de Melo e do prefeito anterior Nelson Marchezan (PSDB), o muro de contenção já teria sido demolido e substituído por arquibancadas elevadas. A ideia que já era proposta por políticos gaúchos desde 2010, depende de aprovação de órgãos fiscalizadores, mas ainda pode ser executada pela empresa Pulsa RS, única a fazer lances no leilão de concessão do Cais Mauá.
Capital gaúcha sem plano para mudanças climáticas
Porto Alegre também segue sendo uma das capitais brasileiras que não possui um plano de ação climática. Busca feita por meio da plataforma Diário do Clima mostra que as discussões para implementar o projeto começaram em 2022, com uma resolução do Conselho Municipal do Meio Ambiente que “determinou a necessidade de provisionar recursos para o Plano Municipal de Enfrentamento às Mudanças Climáticas”.
Em maio de 2023, normativa criou um grupo de trabalho para elaborar o plano, com previsão de concluir os trabalhos em julho de 2024. A menção mais recente ao assunto nos Diários Oficiais de Porto Alegre aparece no dia 15 de abril deste ano, quando foram nomeados sete representantes para a Câmara Técnica do Plano de Ação Climática. Enquanto as discussões continuam, a população da capital gaúcha enfrenta a maior enchente da história, superando a de 1941.
Entre as maiores cidades do estado, apenas Canoas e Rio Grande possuem planos do tipo já aprovados, o que revela a falta de preparo das prefeituras. Levantamento da Agência Pública, mostrou que os municípios gaúchos concentraram 40% dos decretos de emergência reconhecidos pelo governo federal em 2023. As respostas, porém, só após os desastres.
Além de não investir em políticas climáticas, os gestores e parlamentares gaúchos têm feito pior, andando na contramão ao reduzir a proteção ambiental e aprovar legislações que abrem espaço para uma degradação ainda maior da natureza. O problema, no entanto, não fica restrito à esfera estadual e inclui também “boiadas” aprovadas no Congresso Nacional e que aumentam os riscos de eventos climáticos extremos.
Retrocessos ambientais que já contribuem para a crise climática
1 – Novo Código Ambiental – Após a realização de apenas uma audiência pública sobre o tema e sem passar pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa, os parlamentares aprovaram proposta do governo Eduardo Leite para alterar cerca de 500 pontos da legislação ambiental no estado. A Lei n° 15.434, de 9 de janeiro de 2020, mexeu em aspectos como a política de reassentamento para instalação de mineradoras, que passou a ser exigida apenas para obter a Licença de Operação, ou seja, após a instalação de fato.
Um dos pontos mais polêmicos é o chamado autolicenciamento ambiental (saiba mais na sequência). O novo código também extinguiu as normas que impediam o corte de árvores nativas como figueiras, corticeiras, algarrobo e inhanduvá que, quando localizadas próximas a encostas e cursos de água, poderiam contribuir para evitar enchentes e deslizamentos.
O projeto do governador Eduardo Leite também retirou o papel do Estado enquanto responsável por conceder estímulos financeiros à proteção ambiental, o que acabou com a possibilidade de financiamento para “pesquisas e centros de pesquisas, manutenção de ecossistemas, racionalização do aproveitamento da água e energia”, conforme apontou nota técnica elaborada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), em 2019.
2 – Desproteção de áreas próximas a Unidades de Conservação – Os especialistas da Fepam também alertaram para outra alteração na legislação ambiental que pode ter contribuído ainda mais diretamente para o desastre climatico no Estado. Na época foram suprimidos quatro artigos que estabeleciam a proteção de áreas adjacentes à Unidades de Conservação (UCs), tais como: “as ilhas fluviais e os lacustres; as fontes hidrominerais; as áreas de interesse ecológico, cultural, turístico e científico, os estuários, as lagunas, os banhados e a planície costeira; as áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas ou de ambientes de grande circulação biológica”. descrevem os ambientalistas.
3 – Autolicenciamento – Previsto no Novo Código Ambiental do RS, o autolicenciamento passou a ser feito de modo autônomo e sem fiscalização para 49 atividades econômicas, sendo 31 com alto e médio potenciais poluidores. Entre elas estão a silvicultura com pinus e eucalipto e a criação de bovinos semiconfinados.
Na prática, basta que o empresário preencha a Licença Ambiental por Compromisso (LAC) – uma autodeclaração que não passa pela análise prévia de técnicos ambientais e pode valer de 5 a 10 anos. O autolicenciamento foi ratificado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) em 2021. Proposta semelhante está em tramitação no Senado Federal por meio do PL 2159/2021.
4 – Incentivo à silvicultura – Em setembro de 2023, o Consema aprovou a liberação de mais 3 milhões de hectares para uso da silvicultura no Rio Grande do Sul, em uma área que pode chegar a ocupar 10% do território do estado. A monocultura de produção de pinus e eucalipto, duas das principais espécies de árvores usadas na silvicultura, afeta principalmente o bioma pampa, já bastante degradado. Dados do MapBiomas Pampas mostram que, entre 1985 e 2022, a área destinada à silvicultura na parte brasileira do bioma cresceu 1.667% e atingiu 0,72 milhares de hectares.
5 – Privatização de Unidades de Conservação – Também em 2021, a Assembleia Legislativa do RS aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para permitir a concessão da gestão das Unidades Estaduais de Conservação (UCs) à iniciativa privada. A PEC 284/2019, enviada pelo Executivo estadual, foi aprovada em primeiro turno com um placar de 49 votos favoráveis e apenas 1 contrário. Os reflexos dessa legislação já são sentidos pela população de Cambará do Sul. Reportagem do ((o)) eco revela que o ingresso para visita ao parque nacional dos Aparados da Serra pode chegar a R$ 97 por pessoa, fora o valor cobrado por estacionamento.
Projetos com potencial de ampliar degradação ambiental
1 – Projeto da Mina Guaíba – Idealizado pela empresa Copelmi, o projeto busca instalar uma mina de carvão a céu aberto entre as cidades de Eldorado do Sul e Charqueadas (atualmente inundadas pela enchente do Guaíba), distantes cerca de 16 km de Porto Alegre. A falta de consulta às comunidades que seriam afetadas, como indígenas Mbyá Guarani, levou o projeto a ser suspenso pela justiça e perder apoio do governo estadual.
“Sabemos que o projeto ainda não está derrotado e pode voltar a qualquer momento”, alertou Eduardo Raguse, engenheiro ambiental e membro do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul, em entrevista ao Brasil de Fato.
2 – Construções em Áreas de Preservação Permanente – Embora o desastre climático atual esteja associado ao excesso de chuvas, o Rio Grande do Sul também é historicamente afetado por secas e estiagens severas, principalmente nos anos do fenômeno La Niña. Com a justificativa de enfrentar esse problema, parlamentares aprovaram e Eduardo Leite sancionou o PL 151/2023.
O projeto abre espaço para construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APPs), locais cruciais para a preservação ambiental e o equilíbrio das bacias hidrográficas do Estado. A medida busca auxiliar principalmente grandes produtores de soja e milho, monoculturas responsáveis pela degradação do Pampa e de outros biomas pelo Brasil.
No final de abril, o deputado Delegado Zucco (Republicanos) apresentou outro projeto na Assembleia gaúcha – o PL 110/2024 – para ampliar a possibilidade de licenciamento de obras de infraestrutura de barragens e plantios irrigados em APPs. Na esfera federal, o senador Luiz Carlos Heinze (PP/RS) defende, desde 2019, proposta semelhante para estender a “boiada” a nível nacional – o PL 1282/2019 – que aguarda parecer da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural.
3 – PL da devastação dos campos nativos – Texto proposto pelo parlamentar gaúcho Lucas Redecker (PSDB), a partir de projeto do deputado Alceu Moreira (MDB), também do RS, o PL 364/2019 – em tramitação na Câmara dos Deputados – pode afetar 48 milhões de hectares de campos nativos, incluindo 32% do Pampa (uma área equivalente a 6,3 milhões de hectares). O texto prevê a possibilidade de áreas de vegetação usadas para “pastoreio” passarem a ser consideradas áreas rurais consolidadas.
“O PL 364/19 é a maior das boiadas contra todos os biomas brasileiros. Libera o desmatamento em todo o país para defender interesses privados. E com o falso argumento de que nenhuma árvore será derrubada, ignora a importância dos campos nativos e das formações não florestais”, aponta Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica e uma das autoras de nota contra o projeto.
4 – Incentivo à produção de carvão – Também no Congresso Nacional, os senadores Hamilton Mourão (Republicanos), Luiz Carlos Heinze (Progressista) e Paulo Paim (PT) apresentaram projeto para incluir a região carbonífera do Estado do Rio Grande do Sul no Programa de Transição Energética Justa – mesmo sendo uma atividade com baixa participação na matriz energética brasileira e alta contribuição na emissão de gases poluentes na atmosfera. Se aprovado, o PL 4653/2023 prevê subsídios ao uso do carvão mineral e a outros combustíveis fósseis de quase R$ 1 bilhão por ano até 2024, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
5 – Desmonte da fiscalização ambiental e do Ibama – O PL 10273/2018 foi apresentado pelo deputado Jerônimo Goergen (PP/RS) e procura alterar o poder de polícia do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) para controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais. A proposta também retira recursos da entidade, arrecadados através da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA). Segundo levantamento do Observatório do Clima, o valor obtido com a TCFA chegou a R$ 746,8 milhões em 2023, dos quais R$ 315 milhões foram repassados aos estados.
*Micael Olegário – Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 12/05/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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