O exercício de proteger bens em decorrência dos valores culturais, além de essencial para a memória coletiva, é relevante para construção da cidadania, da identidade nacional e da soberania.
Por Inês Virgínia Soares* e Talden Farias**
A jurista francesa Jacqueline Morand-Deviller alega que embora o Direito Ambiental se interesse por “questões sórdidas — lama, resíduos, poluições diversas —, solicitando a opinião e a avaliação de peritos científicos”, o seu aspecto mais sedutor se revela quando o julgamento dos bens a serem protegidos é “reservado ao conjunto de cidadãos sensíveis à Beleza e desejosos de resguardá-la como uma necessidade vital”[1]. A recente decisão do ministro Ricardo Lewandowski, no caso do decreto presidencial que flexibiliza a proteção das cavernas (Decreto 10.935/2022), exemplifica o “aspecto sedutor” mencionado por Morand-Deviller, ao trazer argumentos que reafirmam a ligação entre bens culturais e meio ambiente e que, novamente, lançam luzes para a importância da adoção de uma visão holística, tanto baseada na ciência e nos valores culturais, para proteção dos bens ecológicos, como apoiada no Direito Ambiental, para tutela dos bens culturais.
O Decreto 10.935/2022 foi publicado no dia 12 de janeiro e na prática permitia que as cavernas com grau de relevância máxima pudessem ser descaracterizadas ou mesmo destruídas, em se tratando de atividades consideradas de utilidade pública, como é o caso de grandes empreendimentos minerários, rodovias etc [2]. Vale lembrar que isso até então já poderia se dar com as cavernas de nível baixo, médio ou alto, as quais não estavam imunes da ocorrência de impactos negativos irreversíveis.
No entanto, a reação ao novo decreto foi rápida, com ampla divulgação das consequências práticas dessa norma, o que se deu em razão do engajamento da comunidade acadêmica, mas também de outros setores da sociedade, com destaque para a enorme repercussão dada pela imprensa. A interposição de duas ações no Supremo Tribunal Federal, ADPF 935 e ADPF 937, em prazo muitíssimo exíguo, e a pronta resposta do STF, com a liminar do ministro Lewandowski, relator das ADPFs, suspendendo dispositivos do decreto, também merecem destaque.
Apesar de a Constituição de 1988 apresentar um rol exemplificativo dos sítios que integram o patrimônio cultural brasileiro (artigo 216, inciso V) — sítios de valor paisagístico, artístico, arqueológico, histórico, paleontológico, ecológico e científico —, outros sítios, como por exemplo os de valor espeleológico, antropológico e geológico, se enquadram no inciso constitucional em comento, pela referencialidade constitucionalmente prevista no caput do artigo 216, já que estão ligados à memória, identidade e ação dos grupos formadores da sociedade brasileira.
Como destaca Marcos Paulo de Souza Miranda, a proteção dos sítios espeleológicos “é de fundamental importância sob o ponto de vista do patrimônio cultural, principalmente pelo fato de que neles os arqueólogos e paleontólogos comumente encontram elementos informativos de grande relevância para melhor compreensão do passado da vida sobre a terra” [3].
Se, sob a ótica do patrimônio cultural, os bens espeleológicos são essenciais para o conhecimento do ser humano sobre seus antepassados — como viviam, como se expressavam, sua alimentação etc. — e sobre as relações que estes mantinham com o meio natural, no enfoque da tutela ambiental, esses bens são recursos essenciais para a preservação do ecossistema. Os bens espeleológicos são espaços geográficos inseridos no meio ambiente natural, que se destacam por conterem atributos ecológicos, por abarcarem outros seres vivos, por serem importantes para o equilíbrio do ecossistema. É por preservarem cursos subterrâneos de água, guardarem espécies endêmicas da fauna e abrigarem importância arqueológica e paleontológica, entre outras questões, que aqueles espaços demandam uma proteção diferenciada. Com efeito, há toda uma justificativa em termos de biodiversidade, cultura e paisagem para que tais cavidades sejam protegidas. Nesse esteio, o patrimônio espeleológico é parte integrante e fundamental do equilíbrio ambiental e contribui para a preservação de vários seres vivos. Portanto, a sua degradação, mutilação ou supressão causa, quase sempre, graves desequilíbrios ao meio ambiente.
Os sítios espeleológicos são um bom exemplo da interdisciplinaridade e da diversidade de valores e interesses presentes em um mesmo espaço geográfico. Sua proteção jurídica no cenário brasileiro data da década de 1930, com o Decreto-Lei 25/37, passando pela Lei 3.924/61, que enumera, como patrimônio arqueológico, as cavernas, lapas, grutas e abrigos sobre rocha onde são encontrados vestígios de natureza arqueológica (artigo 2, “b”). Porém, foi com a chegada das normas ambientais que o patrimônio espeleológico não apenas ganhou um arcabouço normativo mais consistente, mas também uma atenção institucional, destacando-se a criação do Centro Especializado voltado ao Estudo, Proteção e Manejo de Cavernas (Cecav) — inicialmente ligado ao Ibama e atualmente ao Instituto Chico Mendes —, que completa 25 anos de existência em junho deste ano.
A tutela jurídica das cavernas é um bom exemplo reflexo e do ganho local com a sistematização dos assuntos “cultura e natureza” nos documentos internacionais, a partir da década de 1970. Na busca de proteção dos diversos elementos que integram o meio ambiente e em um contexto mundial no qual a necessidade de respeito à diversidade cultural e de contenção à devastação ambiental eram assuntos que estavam na ordem do dia, foi aprovada, pela Unesco, em 1972, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial. Nesse mesmo ano de 1972 também se realizou, em Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que enunciou no seu primeiro princípio que “o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e a condições satisfatórias de vida, em um meio ambiente cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar”. A expressão condições satisfatórias de vida indicava a necessidade de preservação, fortalecimento e valorização dos bens naturais e culturais que contribuíssem para o bem-estar da sociedade.
Essas ideias e noções pairavam no cenário internacional e repercutiam no local quando da edição, em 1981, da Lei de Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA, Lei 6.938/81). Como abordamos em texto recente, a partir da PNMA se estruturou no Brasil um sistema de proteção ambiental, que aportou novos e importantes institutos e princípios à defesa do patrimônio cultural. Nessa mesma ótica, a participação da sociedade, para a defesa dos bens ambientais autonomamente considerados, especialmente os bens culturais, também assumiu maior consistência a partir da PNMA. Quatro anos mais tarde, em 1985, a Lei de Ação Civil Pública completa o quadro, com a oferta do aparato processual para que a sociedade civil organizada atue judicialmente nas causas ambientais.
A Constituição de 1988 dedica um capítulo ao tema ambiental, reforçando, do mesmo modo que na PNMA, a concepção de bem ambiental como patrimônio uno, composto de bens naturais e culturais. Apesar da riqueza na abordagem do artigo 225, esse dispositivo não esgota o assunto e há outros tantos artigos no texto constitucional que oferecem instrumentos protetivos para os bens autonomamente considerados:
“Capítulo dos mais modernos, casado à generosa divisão de competências e a tratamento jurídico abrangente, conquanto a tutela do meio ambiente, como analisaremos, não foi aprisionada no artigo 225. Na verdade, saímos do estágio da miserabilidade ecológica constitucional, próprias das Constituições liberais anteriores, para um outro, que, de modo adequado, pode ser apelidado de opulência ecológica constitucional, pois o capítulo do meio ambiente nada mais é do que o ápice ou a face mais visível de um regime constitucional que, em vários pontos, dedica-se, direta ou indiretamente, à gestão dos recursos ambientais” [4].
Essa “opulência ecológica” atinge o patrimônio cultural de forma positiva, mormente em razão da tríplice responsabilização ambiental [5]. A previsão do artigo 225, que possibilita a consideração do bem cultural como bem ambiental essencial à sadia qualidade de vida, em uma perspectiva intergeracional, e indica a responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade na proteção do meio ambiente, permite outras leituras dos artigos que versam sobre manifestações e bens culturais (artigo 215 e artigo 216), municiando a comunidade para a tutela dos valores culturais que gravam os bens ambientais relevantes para seu bem estar cotidiano.
O exercício de proteger bens em decorrência dos valores culturais, além de essencial para a memória coletiva, é relevante para construção da cidadania, da identidade nacional e da soberania [6]. Nesse sentido, quanto maior for a demanda judicial da comunidade para defesa de valores estéticos, paisagísticos, históricos, arquitetônicos sob alegação de ocorrência de poluição e degradação ambiental, maior será a chance de construção jurisprudencial para preservação da qualidade de vida.
A movimentação coletiva para a proteção das cavernas brasileiras, contra o Decreto 10.935/2022, não traz ineditismo, apesar de importante. Há ao menos uma dezena de decisões das cortes superiores que delinearam a vinculação entre cultura e natureza. Algumas ainda trouxeram elementos que fortalecem ou incentivam o exercício da cidadania cultural (ou seria cidadania ambiental?). Destacamos duas dessas decisões: uma do STJ, de 2006; e outra do STF, de 1981.
O acórdão da Representação Constitucional 1.048-1/PB teve como relator o ministro Djaci Falcão e tratava do questionamento da constitucionalidade dos artigos 164 e 165 da Constituição do Estado da Paraíba de 1969, que proibia a construção de edifícios mais altos em determinadas localidades, com destaque para a zona costeira. O STF considerou constitucional a restrição ao direito de construir, embora a ordem constitucional à época que não abordasse expressamente essa temática, trazendo uma relação entre o meio ambiente natural e a questão cultural, como bem destacou o relator do caso:
“Nada existe, ali, de circunscrito ao ‘peculiar interesse’ municipal, desde que a antiga Vila-Rica, superando o âmbito da província, e agora o da própria nacionalidade, viu-se proclamar, pela Unesco, objeto do interesse universal. A amplitude da autonomia da comuna, com seu prefeito, edis e munícipes, costuma ser, por paradoxo, inversamente proporcional à sua qualidade para se ver alçar a um nível superior de disciplina legislativa e de proteção.
(…) As regras em causa, sem dúvida de elevado alcance, visam salvaguardar e preservar valores que se sobrepõem ao interesse meramente Municipal, constituindo, sim, um interesse comum ao Município e ao Estado, que colaboram no planejamento integrado do desenvolvimento econômico e social, tendo em vista a saúde, a segurança, a comodidade da população, o patrimônio ecológico e paisagístico, etc., atendidas as peculiaridades não somente locais, como da própria região”.
O julgado do Recurso Especial 876.931, de 2006, relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques, versava sobre a legitimidade ativa da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (Amajb) na propositura da ação civil pública (ACP) que pedia a cessação imediata de toda atividade predadora e poluidora no conjunto arquitetônico Mansão dos Lage e a proibição de construção de anexos e de obras internas e externas nesse espaço.
À época da ACP, a Mansão dos Lage, tombada pelo Iphan desde 1957, abrigava (e ainda abriga) a Escola de Artes Visuais. É um bem de uso privado e de reconhecido valor cultural, integrante do Parque Lage, que por sua vez é parte do Parque Nacional da Tijuca.
Apesar do artigo 4º (1) do estatuto da Amajb indicar como um de seus objetivos o de “(z)elar pela manutenção e melhoria da qualidade de vida do bairro, buscando manter sua ocupação e seu desenvolvimento em ritmo e grau compatíveis com suas características de zona residencial”, no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, prevaleceu o entendimento de inexistência de pertinência temática entre os desígnios da associação autora, previstos no objeto social, e a demanda veiculada na ação civil pública. A questão foi levada ao STJ pela Amajb, com amparo no artigo 3º, inciso III, alíneas “a” e “d”, da Lei de Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/81), no artigo 5°, inciso V, alínea “b”, da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e na alegação de divergência jurisprudencial. No STJ, o entendimento foi de que a associação de bairro tinha legitimidade ativa para ingressar com a ação [7].
Os motivos levados em consideração para essa decisão decorreram da análise sobre a repercussão de uma atividade predadora e poluidora no conjunto arquitetônico Mansão dos Lage para além dos limites do parque, ou seja, se isso afetaria a qualidade de vida dos moradores do bairro Jardim Botânico. Note-se que a decisão não adentrou no mérito da ação, no impacto negativo ou não da obra de engenharia que a Amajb questionava. Apenas foi decidido, pelo STJ, o direito da associação de ir a juízo, com base na lei ambiental (Lei 6.938/81), e utilizar o instrumento processual coletivo, a ACP, para discutir a manutenção de traços estéticos e paisagísticos de um imóvel, por estes traços apresentarem valores de referência de bem-estar para os que vivem no Jardim Botânico (valores previstos na lei ambiental e declarados no ato de tombamento do bem).
Longe da sordidez mencionada por Jacqueline Morand-Deviller nas duas ações comentadas e na discussão sobre as cavernas, o alinhamento entre cultura e meio ambiente não visa, necessariamente, o “resguardo da beleza”, mesmo que, por acaso, dela se aproxime em algum momento. Em geral, o exercício da cidadania cultural é um exercício de poder, mesmo quando amparado nas leis ambientais. As lides sobre cultura e meio ambiente não estão imunes aos interesses econômicos, à discussão sobre os limites do exercício da propriedade privada e função social da propriedade e à acomodação de poder entre diversos grupos. Mas isso já é assunto para outro artigo.
[1] MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Estética e Direito Ambiental. In: Kishi, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (org.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI. Estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 163
[2] “Artigo 4º — As cavidades naturais subterrâneas com grau de relevância máximo somente poderão ser objeto de impactos negativos irreversíveis quando autorizado pelo órgão ambiental licenciador competente, no âmbito do licenciamento ambiental da atividade ou do empreendimento, desde que o empreendedor demonstre: I – que os impactos decorrem de atividade ou de empreendimento de utilidade pública, nos termos do disposto na alínea “b” do inciso VIII do caput do artigo 3º da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012; II – a inexistência de alternativa técnica e locacional viável ao empreendimento ou à atividade proposto; III – a viabilidade do cumprimento da medida compensatória de que trata o § 1º; e IV – que os impactos negativos irreversíveis não gerarão a extinção de espécie que conste na cavidade impactada”.
[3]MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 80.
[4] BENJAMIN, Antônio Herman. O meio ambiente na Constituição Federal de 1988. In: Kishi, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (org.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI. Estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 368.
[5] O §3º do artigo 225 da Constituição de 1988 dispõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Em igual sentido, a Lei 9.605/1998 dispõe o seguinte: “Artigo 3º — As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”.
[6] REISEWITZ, Lúcia. Direito ambiental e patrimônio cultural: direito à preservação da memória, ação e identidade do povo brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
[7] Resp. 31.150/SP, relator ministro Ari Pargendler.
*Inês Virgínia Soares é desembargadora no TRF-3, doutora em Direito pela PUC-SP, pós-doutora em Estudos da Violência pela USP, autora de publicações nas áreas de patrimônio cultural e direitos humanos e colíder do grupo de pesquisa Arqueologia da Resistência.
**Talden Farias é advogado e professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela Uerj, autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Urbanístico e líder do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Cidades.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 20/02/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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