Por Vladimir Passos de Freitas*
Os crimes ambientais começam a chamar a atenção face à sua incidência na região amazônica, que incluem a ação do PCC, a maior facção criminosa do Brasil, na mineração ilegal.[1] Porém, a Lei 9.605/98, que deles trata, foi feita para casos de menor gravidade, razão pela qual suas penas são quase que simbólicas e os acordos, sob nomes variados, são permitidos em larga escala. O objetivo era o de recuperar o dano ambiental e não colocar o infrator na prisão.
A prática do dano ambiental gera três tipos de responsabilidades, administrativa, civil e penal. Esta é uma regra prevista na antiga Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981 (artigo 14) e na Constituição de 1988 (artigo 225, § 3º).Sucede que, autônomas as esferas de responsabilização, um acordo celebrado em uma não tem influência direta na outra. Assim, por exemplo, a avença feita na ação penal não impedirá a propositura da ação civil pública.
Como é óbvio, o infrator quer resolver o problema como um todo e não uma fração dele. Por tal motivo, é imperioso que o exame dos acordos sejam feitos simultaneamente. No âmbito civil/penal isto é mais fácil, principalmente se a Vara for ambiental. Mas no administrativo é mais difícil. Mas, é chegada a hora de reunirem-se em um só local todas autoridades, do Executivo, Judiciário e MP, buscando-se solução ampla e definitiva. É evidente que, com isto, a negociação com o infrator será facilitada, ganhando o meio ambiente.
Superada esta preliminar, vejamos a competência. Regra geral, é da Justiça Estadual. Por exceção, da Justiça Federal, ou seja, nas hipóteses dos artigos 109, IV, V e IX da Constituição Federal (v.g., poluição marítima, caça em parque nacional, exportação irregular de aves, etc.).
Fixada a competência em uma Justiça, examina-se se o caso é da alçada das Varas ou dos Juizados Especiais Criminais. Os Juizados Especiais receberão boa parte dos delitos ambientais (15), ou seja, aqueles cuja pena máxima for de dois anos de detenção. O quadro abaixo dá uma mostra completa:
Nos crimes de menor potencial ofensivo a autoridade policial fará simples termo circunstanciado que, recebido no Juizado, gerará proposta de transação pelo MP, independentemente de denúncia (artigo 76 da Lei 9.099/95). Se aceita pelo acusado, o processo será extinto. Se não aceita, o MP poderá oferecer denúncia e nova proposta de transação será feita em audiência. Se acolhida, encerra-se o caso. Se rejeitada, prossegue-se na ação penal.
Detalhe, a oferta de transação não será admitida quando o autor da infração tiver sido condenado pela prática de crime à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva, tiver recebido o beneficio nos últimos cinco anos ou as circunstâncias demonstrarem que a medida não será suficiente. Esta regra em linhas gerais irá repetir-se nas propostas de suspensão do processo ou de ANPP.
As propostas podem ser mais flexíveis e, inclusive, abranger soluções não ligadas diretamente ao caso. Mas, evidentemente, desde que tenham natureza ambiental. Imaginação e criatividade ajudam muito. Mas, por vezes, não haverá solução. Por exemplo, no crime de rinha de galos, os espécimes apreendidos não serão “ressocializados” jamais e ordenar que sejam mortos será uma “contradictio in terminis”, uma vez que, apesar de vítimas sofrerão punição máxima.
Vejamos agora os crimes ambientais que permitem a suspensão do processo, ou seja, aqueles com pena mínima igual ou inferior a 1 ano mas a máxima superior dois anos. Regulada pelo artigo 89 da Lei 9.099/95, ela será apresentada junto com denúncia. Em audiência, o acusado dirá se aceita as quatro condições previstas no artigo 89, § 1º, das quais a mais importante é a de promover a “reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo”.
O juiz poderá formular outras condições que se revelem adequadas ao caso (§ 2º), mas a proposta de suspensão do processo é ato exclusivo do agente do MP. Ela não deverá ser feita aos denunciados que se encontrem hipóteses semelhantes às que vedam a transação nos Juizados. O denunciado tem o poder de aceitar ou não a proposta, mas, caso aceite, o processo será suspenso por dois a quatro anos, ao fim dos quais, se cumpridas as exigências, será extinto.
A terceira hipótese é a do chamado Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido no Código de Processo Penal em 2019, por força da Lei 13.964/19, para as hipóteses de crimes em que não cabe transação ou suspensão do processo e a pena mínima seja inferior a 4 anos de reclusão (artigo 28-A).
Portanto, cabe ANPP para os delitos ambientais cuja pena mínima é mais alta e eles são apenas quatro. Como se vê do quadro exposto, incluem-se na categoria os tipos penais dos artigos 32-A (maus tratos a cães e gatos), 41 (incêndio em mata ou floresta), 50-A (desmatar floresta em terra pública) e 69-A (estudo, laudo ou relatório falso). Todos têm pena mínima superior a um ano (portanto, não cabe a suspensão do processo), mas inferior a quatro anos de reclusão.
O ANPP diverge totalmente dos outros dois institutos processuais de conciliação, ou seja, transação e suspensão do processo. Nele o ajuste é feito entre o MP e o acusado diretamente, cabendo ao juiz apenas o papel de homologar ou não a avença (artigo 28-A, § 4º, inciso IV do CPP). Ademais, é requisito obrigatório que o acusado confesse a prática delituosa (artigo 28-A do CPP). Ora, se isto é comum e não representa um problema nos crimes de furto qualificado (artigo 155, § 2º, do Código Penal), tipo que propicia mais acordos, não será rotina nos processos criminais ambientais, pois, o infrator, confessando estará automaticamente condenado na ação de responsabilidade civil.
Questão polêmica é a participação da vítima no ANPP. Se é verdade que em sendo exigida o atrasaria (pelas formalidades) e o dificultaria (pela emoção), verdade é também que seria uma atenção a quem sofreu diretamente o dano. Por exemplo, em crime de incêndio em mata situada em imóvel particular, cuja pena mínima é de dois anos (artigo 41 da Lei 9.605/98), a vítima bem poderia ser convidada a participar das discussões e, quiçá, ver-se incluída no acordo e ser ressarcida dos danos sofridos. Em suma, a conclusão é a de que o MP, ao seu critério, pode, em determinadas situações, convidar a vítima para participar do ANPP.
Feitas estas observações, chega-se à conclusão de que todos os crimes ambientais admitem algum tipo de conciliação. Há quem se oponha a esta opção de política criminal, afirmando que a Justiça não pode transformar-se em um balcão de negócios. Mas, será melhor um acordo já ou uma execução penal daqui a dez anos?
Se a negociação é a opção do legislador, por força da realidade do nosso sistema de Justiça (quatro instâncias e X recursos), estarão os profissionais capacitados a negociar?
No mundo real o que se vê são profissionais acostumados ao conflito indo para a mesa de negociação com o espírito armado. Por exemplo, a proposta escrita de ANPP do MP não pode ser uma repetição da lei, fria e plena de exigências. Não, tem que ser uma carta de escrita leve que seduza o infrator, ainda que dizendo a mesma coisa. E o advogado não deve chegar à audiência ansioso por invocar as suas prerrogativas e ameaçar com um HC ou algo semelhante. Na verdade, ambos precisam fazer um bom curso de negociação.
Mas, suponha-se que o caso não permite nenhum tipo de acordo, seja porque o denunciado não quer, não atende aos requisitos legais ou responde por crimes conexos mais graves. Nesta hipótese, será oportuno lembrar que nas Varas a ação penal seguirá as regras do CPP. E o primeiro passo é avaliar as provas que em alguns crimes ambientais se revelam de difícil apuração. Por exemplo, pesca predatória em alto mar, poluição de águas subterrâneas ou uso irregular de agrotóxicos em distantes zonas rurais.
Constata-se de plano a ascendência da prova técnica em prejuízo da intervenção pessoal (interrogatório ou testemunhas). Fotos, vídeos, imagens do Google Earth são usadas com frequência. Agora os Veículo Aéreos não Tripulados (Vants, drones) também fazem parte do arsenal probatório. A Polícia Ambiental de SP, com a permissão da Lei Estadual 16.380/2017, “conta com cinco batalhões que cobrem todo o Estado”. “Todos eles possuem drones disponíveis e oficiais treinados e especializados na operação dessas aeronaves não tripuladas, que possibilitam maior abrangência e continuidade na fiscalização e monitoramento, a fim de garantir a detecção de qualquer alteração em áreas ambientais”.[2] O número de autos de infração, após a autorização legislativa aumentou 53%.
A perícia é exigida nos crimes que deixam vestígios (artigo 158 do CPP), como o corte de árvores do artigo 38 da Lei 9.605/98. Sucede que a Polícia Científica da Polícia Federal ou dos órgãos estaduais, muito embora contem com profissionais altamente capacitados, não consegue cobrir as múltiplas ocorrências do nosso vasto território. O resultado é que muitos laudos não são feitos ou demoram anos. A nomeação de dois Peritos portadores de diploma de ensino superior pelo delegado (artigo 159, § 1º), de tão longe da realidade nem merece comentários.
Diante de tais fatos, parece-me que o exame técnico feito pelos fiscais do órgão ambiental, instruídos com fotos e outros documentos, são mais do que suficientes para fazer prova da materialidade. Esta deve ser presumida diante da prova emprestada, podendo, entretanto, ser invalidada caso o acusado demonstre ser inadequada ao caso. Mas, nem sempre esta tem sido a posição do STJ, por vezes inclinando-se por uma interpretação formal da norma.[3]
Finalmente, o assistente da acusação. Vítimas indiretas não estão previstas no antigo CPP de 1941. Todavia, nada mais natural do que uma ONG habilitar-se como assistente do MP, dando-se ao artigo 268 do CPP uma interpretação histórico-evolutiva em consonância com a Constituição de 1988.
Eis aí as principais questões da negociação e do processo no âmbito criminal. Aguardemos a evolução, interpretando-se a norma de forma a proteger o meio ambiente.
[1] AMAZÔNIA REAL. COMO O PCC SE INFILTROU NOS GARIMPOS EM RORAIMA, 11 MAI. 2021. DISPONÍVEL EM: HTTPS://AMAZONIAREAL.COM.BR/COMO-O-PCC-SE-INFILTROU-NOS-GARIMPOS-EM-RORAIMA/. ACESSO EM 8 ABR. 2022.
[2] Assembleia Legislativa de São Paulo. Após lei que autoriza drones em operações, média anual de autos de infração ambiental cresce 53%. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?14/01/2022/apos-lei-que-autoriza-drones-em-operacoes–media-anual-de-autos-de-infracao-ambiental-cresce-53–. Acesso em 8 abr. 2022.
[3] STJ, AgRg no AREsp 1571857/PR, Rel. Min. Reynaldo Fonseca, 5ª. Turma, j. 15/10/2019
*Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 19/04/22
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.